O grande povoador

A história do negro no Brasil confunde-se e identifica-se com a formação da própria nação brasileira e acompanha a sua evolução histórica e social. Trazido como imigrante forçado e, mais do que isto, como escravo, o negro africano e os seus descendentes contribuíram com todos aqueles ingredientes que dinamizaram o trabalho durante quase quatro séculos de escravidão. Em todas as áreas do Brasil eles construíram a nossa economia em desenvolvimento, mas, por outro lado, foram sumariamente excluídos da divisão dessa riqueza.

Entretanto, não foi apenas pelo tarbalho que os negros contribuíram para que o Brasil chegasse a ser o que é atualmente. Na cultura que aqui se formava, eles replasmaram os seus padrões culturais de acordo com as necessidades que surgiam. Com isto se autopreservaram, em grande parte, da opressão do sistema escravista.

Esta história começa com a chegada das primeiras levas de escravos vindos da África. Isto se dá por volta de 1549, quando o primeiro contingente é desembarcado em São Vicente. D. João III concedeu autorização a fim de que cada colono importasse até 120 africanos para as suas propriedades. Muitos desses colonos, no entanto, protestaram contra o limite estabelecido pelo rei, pois desejavam importar um número bem superior. Por outro lado, alguns historiadores acham que bem antes dessa data já haviam entrado negros no Brasil. Afirmam mesmo que na nau Bretoa, para aqui enviada em 1511 por Fernando de Noronha, já se encontravam negros no seu bordo. Essa presença, como vemos, confunde-se com a formação da Colônia e, depois, do Império, chegando até os nossos dias.

A consolidação da economia colonial intensificou o tráfico de africanos para o Brasil, especialmente para o Nordeste, onde um tipo de agroindústria se concentrou e floresceu com o cultivo da cana-de-açúcar.

O negro nessa fase é o grande povoador, aquele que chega em ondas sucessivas para preencher os vastos espaços geográficos desocupados. Enquanto o Reino vinha para a aventura da colonização pensando em um breve regresso, deixando, muitas vezes, a família em Portugal, o negro africano sabia que a sua viagem era definitiva e que as possibilidades de voltar não existiam.

O negro dinamiza demograficamente o Brasil

O primeiro (o branco) ou se instalava no comércio, ou lutava para conseguir cartas de sesmaria, terras, finalmente para iniciar suas atividades na agricultura. E para a concessão de sesmarias exigia-se a posse de escravos. Um cronista da época dirá, por isto, que os escravos negros eram as mãos e os pés do Brasil.

Com o deslocamento do eixo econômico da Colônia para o Nordeste, para lá também se concentra o fluxo demográfico de negros vindos da África. Para avaliarmos o crescimento da Colônia com essa entrada permanente de africanos, basta dizer que em 1586 as estimativas davam uma população de cerca de 57000 habitantes – e deste total 25000 eram brancos, 18000 índios e 14000 negros. Segundo cálculo de Santa Apolônia, em 1798, para uma população de 3250000 habitantes, habia um total de 1582000 escravos, dos quais 221000 pardos e 1361000 negros, sem contarmos os negros libertos, que ascendiam a 406000.

Prosseguindo a chegada de africanos, aumentava o seu peso demográfico no total da população brasileira. Para o biênio 1817-1818, as estimativas de Veloso de Oliveira davam, para um total de 3817000 habitantes, a cifra de 1930000 escravos, dos quais 202000 pardos e 1361000 negros. Havia, também, uma população de negros e pardos livres que chegava a 585000. No século XVIII, o qual, segundo o historiador Pandiá Calógeras, foi o de maior importação de africanos, a média teria chegado a 55000 entrados anualmente. Essa massa populacional negro-africana, embora concentrando-se especialmente na região nordestina, se espraiará, em maior ou menor quantidade, por todo o terriório nacional.

Embora não tenhamos possibilidades de estabelecer o número exato de africanos importados pelo tráfico, podemos fazer várias estimativas. Elas variam muito e há sempre uma tendência de se diminuir esse número, em parte por falta de estatísticas e também porque muitos historiadores procuram branquear a nossa população. Essas discussões sobre o número de africanos entrados no Brasil se reacenderam quando se procurou quantificar essa população africana escrava, e posteriormente a afro-brasileira, para com isto estabelecer-se o padrão do que se poderia chamar o homem brasileiro.

A apuração da nossa realidade étnica excluiria o branco como representativo do nosso homem. Daí se procurar subestimar o negro no passado e a sua significação atual.

Essas estimativas variam desde a do historiador Rocha Pombo, que calcula em 10000000 o número de negros africanos entrados, às de Renato Mendonça, que afirmou ter sido de 4830000. Esse autor, que fez os seus cálculos baseado em estatísticas aduaneiras, não sabemos apoiados em que critérios, pois desde 1831 o tráfico era considerado ilegal, elaborou o segundo quadro:

NÚMERO DE ESCRAVOS ENTRADOS NO BRASIL (avaliação feita baseada em estatísticas aduaneiras)

PeríodoRegiãoEntradas anuaisTotal ânuoTotal da importação
século XVItodo o Brasil30000
século XVIIBrasil holandês300080008000
século XVIIIPará
Recife
Bahia
Rio de Janeiro
600
5000
8000
12000
250002500000
século XIX (até 1850)Rio de Janeiro20000500001500000
durante o tráfico4850000

Fonte: MENDONÇA, Renato. A influência africana no português do Brasil. São Paulo, Nacional, 1935.

Esses dados, como se pode facilmente compreender, são inexatos e/ou incompletos. O problema do contrabando obviamente não foi computado como uma variável a ser considerada. Mas o certo é que quase 40% do total de africanos retirados do Continente Negro durante a existência do tráfico foram desembarcados no Brasil. Conforme dissemos, ele se distribuiu por todo o território nacional.

Em 1819, pelas estatísticas de Veloso de Oliveira, assim se distribuía a nossa população nacionalmente, segundo o quadro apresentado por Calógeras.

ProvínciasLivresEscravosTotal% de escravos
Amazonas1331060001935031,6
Pará909013300012390126,6
Maranhão6666813333220000066,6
Piaui48321124056072620,3
Ceará1457315543220117027,6
Rio Grande do Norte6181291097092112,8
Paraíba79725177239644817,4
Pernambuco2738329763337145526,3
Alagoas690944287911197338,3
Sergipe887832621314199622,8
Bahia33064914726347791230,8
Espírito Santo52573202727284527,7
Rio de Janeiro e a corte36394014606051000023,4
São Paulo1606567766723832332,6
Paraná49251101915944217,2
Santa Catarina3485991724403121,9
Rio Grande do Sul63927282539218030,7
Minas Gerais46334216854363188526,9
Goiás36368268006316842,5
Mato Grosso23216141803739638,6

Fonte: RAMOS, Artur. Introdução à antropologia brasileira. Rio de Janeiro, Casa do Estudante do Brasil, 1943.

Presença nacional do negro

Segundo fica demonstrado por estes dados que refletem a distribuição nacional da população negra, esta foi, apesar da sua condição de inferioridade econômica e social, a grande povoadora do nosso território. E não apenas povoou, mas criou pequenas comunidades rurais em todo o território nacional atravéis de quilombos, fundando núcleos populacionais, muitos dos quais existem até hoje.

Por ter sido a escravidão um fato de ordem nacional, a presença do negro, escravo ou livre, também se espalhou nacionalmente. Em 1872, quando a população negra escrava já em declínio, os escrqvos constituíam 15,2% da população do país, nenhuma região tinha menos de 7% de habitantes escravos e a taxa mais alta era de apenas 19,5%. Podemos por esses dados ver, de um lado, a expressão nacional da população negra escrava e, de outro, a progressiva diminuição dessa população percentualmente em relação ao século precedente. Convém salientar, porém, que nessa estatística não foi computada a população negra livre, o que aumentaria em muito esses percentuais.

Mas o certo é que o negro (quer escravo, quer livre) foi o grande povoador do nosso território, empregando o seu trabalho desde as charqueadas do Rio Grande do Sul aos ervais do Paraná, engenhos e plantações do Nordeste, pecurária na Paraíba, atividades extrativas na Região Amazônica e na mineração de Goiás e Minas Gerais. O negro não apenas povoou, mas ocupou os espaços sociais e econômicos que, através de seu trabalho, dinamizavam o Brasil.

A produção de uma economia colonial, e por isso destinada a um mercado externo cada vez maior, era fruto desse trabalho negro-escravo. E essa economia, que passa pela produção açucareira, pela mineração, produtos tropicais e termina na fase do café, é feita pelo engro. No entanto, esse fato não contribui em nada para que ele consiga um mínimo dessa renda em proveito próprio. Pelo contrário. Toda essa produção é enviada para o exterior, e os senhores de escravos ficam com todo o lucro da exportação e comercialização.

Houve, de um lado, uma demanda mundial pelos produtos aqui produzidos, mas, de outro, uma impossibilidade estrutural de os produtores dessa riqueza participarem e se beneficiarem dela.

Isto ocorreu durante todo o tempo em que perdurou o regime escravista. Após 1530, quando se pode falar realmente em colonização, com engenhos montados em São Vicente, iremos encontrar um dinamismo crescente na produção colonial brasileira. No século XVI a nossa produção já era superior à América espanhola. Os cronistas quinhentistas mais representativos, como Fernão Cardim, Gabriel Soares de Souza e o padre Anchieta, avaliam a cifra de 300000 arrobas para a produção anual do açúcar brasileiro, o que daria uma renda per capita das mais altas do Brasil em todos os tempos. No outro século essa produção se duplica. No entanto, como já dissemos, a grande população negra escrava não participava da divisão dessa riqueza, sendo considerada igual aos animais e assim tratada.

Deslocamento para as áreas de trabalho

Se isto aconteceu no período da produção açucareira, a mesma coisa iremos constatar no período da mineração. Minas Gerais desponta e consegue o seu apogeu até o último quartel do século XVIII, como uma nova e florescente etapa da exportação colonial, a mais importante, segundo as autoridades de Portugal.

O negro é deslocado para preencher os vazios demográficos dessa nova faixa de trabalho. Não levas apenas o seu trabalho, contudo, mas a sua cultura, ensinando técnicas de metalurgia e mineração, aperfeiçõando métodos de trabalho, extraindo o ouro, procurando diamantes para proporcionar a riqueza dos contratadores e da Coroa portuguesa. O negro escravo em Minas Gerais, por questões particulares, sofre as mais violentas formas de controle no trabalho, é vigiado diariamente. Quando fugira, tinha toda uma milícia de capitães-do-mato para persegui-lo. Mesmo assim conseguia extrair do subsolo mineiro toda a riqueza que foi enviada para Portugal e se destinava ao pagamento da dívida que a metrópole havia contraído com a Inglaterra.

Por outro lado, o decréscimo da população negra escrava depois de 1850, quando é extindo o tráfico, deve-se à sua grande mortalidade, pois, segundo cálculos confiáveis, a média de "vida útil" do escravo era de 7 a 10 anos. Mesmo assim, a sua influência povoadora em toda a extensão geográfica do Brasil se fez e se faz sentir, conforme demonstram todos os recenseamentos que foram feitos, incluindo o último, de 1980. O negro foi o grande povoador da nação brasileira durante a sua evolução social e histórica.

Por isto salientamos, aqui, o seu papel como semeador de cidades, através da formação de núcleos quilombolas em âmbito nacional, tendo-se notícias desses algomerados rebeldes desde o Amazonas até o Rio Grande do Sul, conforme veremos oportunamente.