O negro escravo no Brasil-Colônia

Esse grande povoador do Brasil que foi o negro, povoou-o, porém, em condições desfavorabilíssimas, pois o fez na condição de escravo. O auge do escravismo coincide com o auge da exportação do açúcar para o mercado internacional. Este montante de produção, para que houvesse equilíbrio, necessitava externamente de um comprador que o consumisse todo e, internamente, de homens que trabalhassem para gerá-lo em condições de dar lucros compensadores aos senhores de engenho.

Durante o período do Brasil-Colônia, quando chega ao seu explendor a produção açucareira, registra-se também o pico da importação de negros escravos. Mas essa produção era conseguida através de normas de trabalho estabelecidas pela classe senhorial e pelas estruturas de poder da época. E cabe perguntar: em que condições os escravos produziam essa riqueza?

As descrições de testemunhas variam, mas a realidade na sua essência é uma só: o negro escravo vivia como se fosse um animal. Não tinha nenhum direito, e pelas Ordenações do Reino podia ser vendido, trocado, castigado, mutilado ou mesmo morto sem que ninguém ou nenhuma instituição pudesse intervir a seu favor. Era uma propriedade privada, propriedade como qualquer outro semovente, como o porco ou o cavalo. Um dos observadores dessa época, Antonil, assim descreveu as condições sob as quais o escravo negro trabalhava:

No Brasil costumam dizer que para o escravo são necessários três pês, a saber: pão, pau e pano. E posto que comecem mal, principiando pelo castigo, que é o pau; contudo provera a Deus, que tão abundante fosse o comer, e o vestir, como muitas vezes é o castigo dado por qualquer cousa pouco provada ou levantada; e com instrumentos de muito rigor, ainda quando os crimes são certos; de que se não usa nem com brutos animais, fazendo algum senhor mais caso de um cavalo, que de meia dúzia de escravos; pois o cavalo é servido, e tem quem lhe busque capim, tem pano para o suor e freio dourado 1.

Como o escravo se alimentava e era castigado

A alimentação, por seu turno, não era a de fartura que alguns autores descrevem, quando afirma que o negro era o elemento mais bem-alimentado do Brasil colonial. Pelo contrário. Vilhena, descrevendo o tipo de alimentação do escravo e o comportamento dos seus senhores no particular, pinta uma situação de calamidade alimentar, pois alguns desses nem comida davam aos seus cativos. No final do século SVIII ele assim descreve a situação dos escravos no particular:

[...] dever-se-ia de justiça e caridade providenciar sobre o bárbaro e cruel e inaudito modo como a maior parte dos senhores tratam os desgraçados escravos de trabalho. Tais há que não lhes dando sustento algum lhes facultam somente trabalharem no domingo ou dia santo em um pedacinho de terr a que chamam "roça" para daquele trabalho tirarem seu sustento para toda a semana acudindo somente com alguma gota de mel, o mais grosseiro, se é tempo de moagem. 2

Ainda sobre o mesmo assunto, Ademar Vidal, baseado em uma testemunha da época, afirma que

A comida era jogada ao chão. Seminus, os escravos dela se apoderavam num salto de gato, comida misturada com areia, engolindo tudo sem mastigar porque não havia tempo a esperar diante dos mais espertos e mais vorazes. 3

A jornada de trabalho era de catorze a dezesseis horas, sob a fiscalização do feitor, que não admitia pausa ou distração. Quando um escravo era considerado preguiçoso ou insubordinado, aí vinham os castigos. O feitor, ou um escravo por ele designado, era o executor da sentença. Conforme a falta, havia um tipo de punição e de tortura. Mas a imaginação dos senhores não tinha limites, e muitos criacam os seus métodos e instrumentos de tortura próprios. Mas de modo geral eram esses os principais instrumentos de tortura, aviltamento ou disciplina de trabalho:

instrumentos de captura e contençãoinstrumentos de suplícioinstrumentos de aviltamento
correntes, gonilha ou golilha, gargalheira, tronco, vira-mundo, algemas, machos, cepo, corrente e peia.máscaras, anjinhos, bacalhau, palmatória.gonilha, libambo, ferro para marcar, placas de ferro com inscrições infamantes.

Segundo Artur Ramos, a quem vemos o esquema acima:

Esta classificação é evidentemente forçada e tem um interesse meramente didático. Os instrumentos de captura convertem-se facilmente em instrumentos de suplício, como é fácil deduzir-se. As correntes, os troncos, as algemas e machos visam principalmente à contenção do escravo, para transporte ou para impedir-lhe a fuga. Mas esses instrumentos, provocando a imobilidade forçada, tornam-se um verdadeiro suplício. Ainda mais: qualquer um dos instrumentos de captura ou de suplício tem um aviltamento moral. 4

Os dois instrumentos de suplício mais usados em o tronco e o pelourinho, onde eram aplicadas as penas de açoite. O primeiro podemos colocar ocmo símbolo da Justiça privada, e o segundo como símbolo da Justiça pública. Mas, de qualquer forma, a disciplina de trabalho imposta ao escravo baseava-se na violência contra a sua pessoa. Ao escravo fugido encontrado em quilombo mandava-se ferrar com um F na testa e em caso de reincidência cortavam-lhe uma orelha. 5 O justiçamento do escravo era na maioria das vezes feito na própria fazenda pelo seu senhor, havendo casos de negros enterrados vivos, jogados em caldeirões de água ou azeite fervendo, castrados, deformados, além dos castigos corriqueiros, como os aplicados com a palmatória, o açoite, o vira-mundo, os anjinhos (também aplicados pelo capitão-do-mato quando o escravo capturado negava-se a informar o nome do seu dono) e muitas outras formas de se coagir o negligente ou rebelde.

Na divisão social do trabalho, noventa por cento ou mais dos escravos eram destinados às atividades da agroindústria açucareira, atividades nas minas ou fazendas de café. Os outros eram os chamaos escravos domésticos.

Esses escravos, assim distribuídos na hora do trabalho, finda a faina cotidiana, eram recolhidos às senzalas, onde se amontoavam sem nenhuma condição de higiene ou conforto. Os escravos que não eram do eito e do engenho, da faiscação ou plantação de café, trabalhavam na casa do senhor como mucamas, cozinheiras, cocheiros, carregadores de liteiras, transportadores de tigres, limpadores de estrebarias, moleques de recado, doceiras, amas-de-leite, parteiras, carregadores de lenha e inúmeras outras ocupações que faziam funcionar a casa-grande.

Toda essa população que vivia literalmente excluída de qualquer direito político constituía a única fonte produtora de bens, sob a coerção extra-econômica que a sua condição de semovente permitia. Como vemos, o escravo era o trabalhador fundamental de uma economia que exigia uma técnica muito complexa, pois não era apenas uma economia extrativa, mas uma agroindústria cuja diversificação interna do trabalho era bem acentuada.

... Do eito para a senzala ...

Antonil assim descreve a sociedade escravista na época do Brasil-Colônia:

Toda a escravatura (que nos maiores engenhos passa o número de 150 a 200 peças contando as dos partidos) quer mantimentos e fardas, medicamentos, enfermaria e enfermeiro; e para isso são necessárias roças de muitas mil covas de mandioca. Querem os barcos, velames, cabos, cordas e breu. Querem as fornalhas que por sete ou outo meses ardem de dia e de noite, muita lenha; e para isto é mister dois barcos velejados, para se buscar no portos, indo um atrás do outro sem parar, e muito dinheiro para a comprar; os grandes matos, os muitos carros, e muitas juntas de boi para se trazer. Querem os canaviais também suas barcas, e carros com dobradas equipações de bois. Querem enxadas e foices. Querem as serrarias machados e serras. Quer a moencia de toda a casta de paus de lei sobressalente, e muitos quintais de aço e de ferro. Quer a carpintaria madeiras seletas e fortes para esteios, vigas aspas e rodas; e pelo menos os intrumentos mais usuais, a saber: serras, trados, verrumas, compassos, réguas, escopros, enxós, goivas, machados, martelos, cantins e junteiras, pregos e plainas. Quer a fábrica de açúcar faróis, e caldeiras, tachas e bacias, e outros muitos instrumentos menores, todos de cobre. [...] São finalmente necessários, além das senzalas dos escravos e além da morada do capelão, feitores, mestre, purgador, banqueiro e caixeiro, uma capela decente com seus ornamentos, todo o aparelho do altar, e umas casas para o senhor de engenho com seu quarto separado paraos hóspedes, que no Brasil, falto totalmente de estalagens, são contínuos; e o edifício do engenho, forte e espaçoso, com as mais oficinas, e a casa de purgar, caixaria, alambique e outras cousas, que por miúdas aqui se escusa apontá-las e delas não se falará. 6

Ese longo período é muito elucidativo, pois mostra, muito bem, pelos instrumentos enumerados na primeira parte, como o negro escravo atuava em todos os níveis da divisão do trabalho, não apenas plantando e/ou colhendo cana, mas participando das técnincas e profissões exigidas para a prosperidade e o dinamismo dos engenhos. Na segunda parte, por outro lado, vemos o grande número de pessoas que se beneficiavam, direta ou indiretamente, desse trabalho, com todo um rosário de membros parasitários, indo dos funcionários fiscalizadores, padres, hóspedes e parentes até especialmente o senhor de escravos.

Neste mundo economicamente fechado, duranteo Brasil-Colônia somente quem trabalhava era o negro escravo. O fausto dessa economia, que permitia aos senhores importarem seda e vinhos da França e o seu comportamento de verdadeiros nababos, tinha como único suporte o trabalho da escravaria, que vivia sob as formas mais violentas de controle social, num clima de terrorismo permanente, ou se rebeleva e fugia para as matas, organizando quilombos, onde reencontrava a sua condição humana.

1

ANTONIL, André João. Cultura e opulências do Brasil. Salvador, Progresso, 1950, p. 55.

2

VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador, Itapoã, 1969. 3v., v. 1, p. 185. Recompilação de notícias soteropolitanas e brasílicas.

3

VIDAL, Ademar. Costumes e práticas do negro. In: II CONGRESSO AFRO BRASILEIRO SALVADOR, 1937. O negro no Brasil. São Paulo. Civilização Brasileira. 1940, p. 37.

4

RAMOS, Artur. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro, Nacional, 1942, p. 110.

5

O texto desse alvará encontra0se em: MOURA, Clóvis. Quilombos; resistência ao escravismo. São Paulo, Ática, 1988, p. 20.

6

ANTONIL, André João. Op. Cit., p. 18-9.