A quilombagem como agente de mudança social

Entendemos por quilombagem o movimento de rebeldia permanente organizado e dirigido pelos próprios escravos que se verificou durante o escravismo brasileiro em todo o território nacional. Movimento de mudança social provocado, ele foi uma força de desgaste significativa ao sistema escravista, solapou as suas bases em diversos níveis – econômico, social e militar – e influiu poderosamente para que esse tipo de trabalho entrasse em crise e fosse sibstituído pelo trabalho livre.

A sua dinâmica expressava a contradição fundamental da época, isto é, aquela que existia entre os escravos e os seus senhores e aparecia, em conseqüência disso, em todas as áreas e épocas em que o sistema de produção escravista foi estabelecido.

A quilombagem é um movimento emancipacionista que antecede, em muito, o movimento liberal abolicionista; ela tem caráter mais radical, sem nenhum elemento de mediação entre o seu comportamento dinâmico e os interesses da classe senhorial. Somente a violência, por isto, poderá consolidá-la ou destruí-la. De um lado os escravos rebeldes; de outro os seus senhores e o aparelho de repressão a essa rebeldia.

O quilombo aparece, assim, como aquele módulo de resistência mais representativo (quer pela sua quantidade, quer pela sua continuidade histórica) que existiu. Estabelecia uma fronteira social, cultural e militar contra o sistema que oprimia o escravo, e se constituía numa unidade permanente e mais ou menos estável na proporção em que as forças repressivas agiam menos ou mais ativamente contra ele. Dessa forma, o quilombo é o centro organizacional da quilombagem, embora outros tipos de manifestação de rebeldia também se apresentassem, como as guerrilhas e diversas outras formas de protesto individuais ou coletivas. Entendemos, portanto, por quilombagem uma constelação de movimentos de protesto do escravo, tendo como centro organiacional o quilombo, do qual partiam ou para ele convergiam e se aliavam as demais formas de rebeldia.

Incluímos, por este motivo, no conceito geral de quilombagem outras manifestações de protesto racional e social, como por exemplo as insurreições baianas do século XIX que culminaram com a grande insurreição de 1835 em Salvador, que tanto pânico provocou entre as autoridades, forças militares e membros da população. Isto se explica não somente porque esses movimentos emancipacionistas escravos se inserem a mesma pauta de reinvidicações dos quilombolas, mas também porque esses negros urbanos contavam como aliados os escravos refugiados nos diversos quilombos existentes na periferia de Salvador. Igualmente deverá ser incluído na quilombagem o bandoleirismo quilombola, os exemplos mais destacados são os de João Mulungu, em Sergipe, e Lucas da Feira, na Bahia, embora inúmeros outros tenham existido durante a escravidão em todo o território nacional.

A quilombagem era, por isto, a manifestação mais importante, que expressava a contradição fundamental do regime escravista. Os senhores de escravos, por outro lado, não desdenhavam a sua importância e se municiavam de recursos (militares, políticos, jurídicos e terroristas) para combatê-la. Essa estratégia senhorial vai das leis da metrópole aplicadas na Colônia, alvarás e outros estatutos repressivos, à formação de milícias de capitães-do-mato, confecção e uso de aparelhos de suplício e outras formas de repressão não-institucionalizadas mas que se haviam transformado em costume.

Em outro local, por essas razões já havíamos escrito que:

O quilombo foi, incontestavelmente, a unidade básica de resistência do escravo. Pequeno ou grande, estável ou de vida precária, em qualquer região onde existia a escravidão, lá se encontrava ele como elemento de desgaste do regime servil. O fenômeno não era atomizado, circunscrito a determinada área geográfica, como a dizer que somente em determinados locais, por circunstâncias mesológicas favoráveis, ele podia afirmar-se. O quilombo aparecia onde quer que a escravidão surgisse. Não era simples manifestação tópica. Muitas vees surpreende pela capacidade de organização, pela resistência que oferece; destruído parcialmente dezenas de vezes e novamente aparecendo em outros locais, plantando a sua roça, construindo suas casas, reorganizando a sua vida social e estabelecendo novos sistemas de defesa. O quilombo não foi, portanto, apenas um fenômeno esporádico. Constituía-se em fato normal da sociedade escravista. 1

O fenômeno da quilombagem, achamos nós, tem como epicentro o quilombo, mas nele podem ser englobadas todas as manifestações de resistência da parte do escravo.

A prática da quilombagem

Por esses motivos é um movimento abrangente e radical. Nele se incluem não apenas negros fugitivos, mas também índios perseguidos, mulatos, curibocas, pessoas perseguidas pela polícia em geral, bandoleiros, devedores do fisco, fugitivos do serviço militar, mulheres sem profissão, brancos pobres e prostitutas.

Era um cadinho de perseguidos pelo sistema colonial. Era no quilombo ou nas demais manifestações da quilombagem que essa população marginalizada se recompunha socialmente. Por tudo isto a quilombagem tem uma dimensão nacional, conforme já dissemos. Articula-se nacionalmente, desde os primórdios da escravidão, atravessa todo o sistema escravista, desarticulando-o constantemente, e assume, muitas vezes, aspecto ameaçador para a classe senhorial, como no caso da República de Palmares. 2

Não iremos fazer aqui, mais uma vez, um apanhado histórico das organizações quilombolas, nem isto seria possível para um só autor e nas dimensões deste livro. Vamos apenas mostrar o elenco dos principais quilombos conhecidos nos diversos locais nos quais eles se manifestaram. 3

Principais quilombos brasileiros

BAHIA

  1. Quilombo do rio Vermelho
  2. Quilombo do Urubu
  3. Quilombos de Jacuípe
  4. Quilombo de Jaguaribe
  5. Quilombo de Maragogipe
  6. Quilombo de Muritiba
  7. Quilombos de Campos de Cachoeira
  8. Quilombos de Orobó, Tupim e Andaraí
  9. Quilombos de Xiquexique
  10. Quilombo do Buraco do Tatu
  11. Quilombo de Cachoeira
  12. Quilombo de Nossa Senhora dos Mares
  13. Quilombo do Cabula
  14. Quilombos de Jeremoabo
  15. Quilombo do rio Salitre
  16. Quilombo do rio Real
  17. Quilombo de Inhambupe
  18. Quilombos de Jacobina até o rio São Francisco

Nota: Stuart B. Schwartz conseguiu listar 35 quilombos na região da Bahia entre os séculos XVII, XVIII e XIX.

Fontes: diversas, coordenadas pelo autor. Especialmente: PEDREIRA, Pedro Tomás. Os quilombos baianos. Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, 1962. 24(4), out./dev. SCHWARTZ, Stuart B. Mocambos, quilombos e Palmares; a resistência escrava no Brasil colonial. Estudos Econômicos. São Paulo, 1987, n. 1. Número especial.

MARANHÃO

  1. Quilombo da lagoa Amarela (Preto Cosme)
  2. Quilombo do Tiriaçu
  3. Quilombo de Maracaçumé
  4. Quilombo de São Benedito do Céu
  5. Quilombo do Jaraquariquera

Fontes: várias, coordenadas pelo autor.

MATO GROSSO

  1. Quilombo nas vizinhanças do Guaporé
  2. Quilombo da Carlota (denominado posteriormente Quilombo do Piolho)
  3. Quilombos à margem do rio Piolho
  4. Quilombo de Pindaituba
  5. Quilombo do Motuca
  6. Quilombo de Teresa do Quariterê

Fonte: Correspondência do Conselho Ultramarino, 1777. Códice 246. Apud PINTO, Roquete. Rondônia. São Paulo, 1950.

MINAS GERAIS

  1. Quilombo do Ambrósio (Quilombo Grande)
  2. Quilombo do Campo Grande
  3. Quilombo do Bambuí
  4. Quilombo do Andaial
  5. Quilombo do Careca
  6. Quilombo do morro de Angola
  7. Quilombo do Paraíba
  8. Quilombo do Ibituruna
  9. Quilombo do Cabaça
  10. Quilombo de Luanda ou Lapa do Quilombo
  11. Quilombo do Guinda
  12. Lapa do Isidoro
  13. Quilombo do Brumado
  14. Quilombo do Caraça
  15. Quilombo do Inficionado
  16. Quilombos de Suçuí e Paraopeba
  17. Quilombos da serra de São Bartolomeu
  18. Quilombos de Marcela
  19. Quilombos da serra de Marcília

Nota: Carlos Magno Guimarães conseguiu listar 116 quilombos em Minas Gerais no século XVIII.

Fontes: diversas, coordenadas pelo autor. Especialmente: COSTA FILHO, Miguel. Quilombos. Estudos Sociais, Rio de Janeiro, 1960. n. 7, 9, 10. VASCONCELOS, Diogo. História Média de Minas Gerais. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1918. GUIMARÃES, Carlos Magno. Os quilombos do século do ouro; Minas Gerais. Estudos Econômicos, São Paulo, 1988. 18(2).

PERNAMBUCO

  1. Quilombo do Ibura
  2. Quilombo de Nazareth
  3. Quilombo de Catucá (extensão do Cova da Onça)
  4. Quilombo do Pau Picado
  5. Quilombo do Malunguinho
  6. Quilombo de Terra Dura
  7. Quilombo do Japomim
  8. Quilombos de Buenos Aires
  9. Quilombos do Palmar
  10. Quilombos de Olinda
  11. Quilombo do subúrbio do engenho Camorim
  12. Quilombo de Goiana
  13. Quilombo de Iguaraçu

Fontes: diversas, coordenadas pelo autor. Especialmente: MELO, Josemir Camilo de. Quilombos em Pernambuco; século XIX. Revista do Arquivo Público. Recife, 1978. n. 31, 32. FREYE, Gilberto. Nordeste. Rio de Janeiro, José Olympio, 1937.

PARAÍBA

  1. Quilombo do Cumbe
  2. Quilombo da serra de Capuaba
  3. Quilombo de Gramame (Paratuba)
  4. Quilombo do Livramento

Fonte: PORTO, Valdice Mendonça. Paraíba em preto e branco. João Pessoa, s. ed., 1976.

REGIÃO AMAZÔNICA

  1. Amapá: Oiapoque e Calçoene
  2. Amapá: Mazagão
  3. Pará: Alenquer (rio Curuá)
  4. Pará: Óbidos (rio Trombetas e Cuminá)
  5. Pará: Caxiu e Cupim
  6. Alcobaça (hoje Tucuruí), Cametá (rio Tocantins)
  7. Pará: Mocajuba (litorial atlântico do Pará)
  8. Pará: Gurupi (atual divisa entre o Pará e o Maranhão)
  9. Maranhão: Turiaçu (rio Maracaçumé)
  10. Maranhão: Turiaçu (rio Turiaçu)
  11. Pará: Anajás (lagoa Mocambo, ilha de Marajó)
  12. Margem do baixo Tocantins: Quilombo de Felipa Maria Aranha

Fonte: SALLES, Vicente. O negro no Pará. Rio de Janeiro, FGV/UFPA, 1971.

RIO DE JANEIRO

  1. Quilombo de Manual Congo
  2. Quilombos às margens do rio Paraíba
  3. Quilombos na serra dos Órgãos
  4. Quilombos da região de Inhaúma
  5. Quilombos dos Campos de Goitacazes
  6. Quilombo do Leblon
  7. Quilombo do morro do Desterro
  8. Bastilhas de Campos (quilombos organizados pelos abolicionistas daquela cidade)

Fontes: diversas, coordenadas pelo autor.

RIO GRANDE DO SUL

  1. Quilombo do negro Lúcio (ilha dos Marinheiros)
  2. Quilombo do Arroio
  3. Quilombo da serra dos Tapes
  4. Quilombo de Manuel Padeiro
  5. Quilombo do município de Rio Pardo
  6. Quilombo na serra do Distrito do Couto
  7. Quilombo no município de Montenegro (?)

Nota: a interrocação posta depois do quilombo do município de Montenegro significa que as fontes informativas não são conclusivas quanto à sua existência; o quilombo de Manuel Padeiro é chamado, em algumas fontes, de Manual Pedreiro.

Fonte: MAESTRI FILHO, José Mário. O escravo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes/EDUCS, 1984.

SANTA CATARINA

  1. Quilombo da Alagoa (Lagoa)
  2. Quilombo da Enseada do Brito
  3. Outros quilombos menores "que devem ter dado muito trabalho"

Fonte: PIAZZA, Walter. O escravo numa economia minifundiária. São Paulo, Resenha Universitária/UDESC, 1975.

SÃO PAULO

  1. Quilombos dos Campos de Araraquara
  2. Quilombo da cachoeira do Tambau
  3. Quilombos à margem do rio Tietê, no caminho de Cuiabá
  4. Quilombo das cabeceiras do rio Corumateí
  5. Quilombo de Moji-Guaçu
  6. Quilombos de Campinas
  7. Quilombo de Atibaia
  8. Quilombo de Santos
  9. Quilombo da Aldeia Pinheiros
  10. Quilombo de Jundiaí
  11. Quilombo de Itapetininga
  12. Quilombo da fazendo de Monjolinho (São Carlos)
  13. Quilombo de Água Fria
  14. Quilombo de Piracicaba
  15. Quilombo de Apiaí (de José de Oliveira)
  16. Quilombo do Sítio do Forte
  17. Quilombo do Canguçu
  18. Quilombo do termo de Parnaíba
  19. Quilombo da Freguesia de Nazaré
  20. Quilombo de Sorocaba
  21. Quilombo do Pai Felipe
  22. Quilombo do Jabaquara

Fontes: diversas, coordenadas pelo autor.

SERGIPE

  1. Quilombo de Capela
  2. Quilombo de Itabaiana
  3. Quilombo de Divina Pastora
  4. Quilombo de Itaporanga
  5. Quilombo do Rosário
  6. Quilombo do Engenho do Brejo
  7. Quilombo de Laranjeiras
  8. Quilombo de Vila Nova
  9. Quilombo de São Cristóvão
  10. Quilombo de Maroim
  11. Quilombo de Brejo Grande
  12. Quilombo de Estância
  13. Quilombo de Rosário
  14. Quilombo de Santa Luíza
  15. Quilombo de Socorro
  16. Quilombos do rio Contiguiba
  17. Quilombo do rio Vaza Barris

Fontes: FIGUEIREDO, Ariosvaldo. O negro e a violência do branco. Rio de Janeiro, José Álvares, 1977. MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. 4. ed. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1988. MOTT, Luís R. B. Pardos e pretos em Sergipe (1774-1851).. Separata da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, 1976. SAMPAIO, Aluysio. Os quilombos do Contiguiba. Seiva, Salvador, 6(1).

Essa pequena listagem bem demonstra como a quilombagem era um fenômeno nacional. Convém salientar que ele não representa, nem pela quantidade nem pela extensão geográfica, a sua importância social. Os quilombos eram focos de concentração demográfica e, ao mesmo tempo, fator de mobilidade social horizontal permanente. Podemos ver uma corrente migratória quilombola para as fronteiras, especialmente rumo às dos países vizinhos, destacando-se, nesse sentido, a que demandava às goianas. Esse movimento migratório chegou a impressionar e procuapr as autoridades e políticos, tendo Tavares Bastos a ele se referido como um elemento de fraqueza militar. Diz ele nesse sentido:

O governo oriental na última guerra (1864) expedira emissários para sublevarem os escravos do Rio Grande. Na Cruz Alta em Taquari e outros lugares houve por isso tentativas de insurreição. Muñoz e Apparício, chefes orientais, invadindo aquela província proclamaram que vinham dar liberdade aos escravos. O último relatório do Ministério da Justiça atribui a manejos de alguns orientais as tentativas de insurreição em Taim e Taquari.

Além disso, no tempo de paz, a fuga de escravos para os territórios vizinhos e outros fatos promovem conflitos entre as autoridades e amarguraram algumas de nossas questões internacionais. Ainda há pouco, noticia-se do Norte a fuga de escravos do alto Amazonas para o território do Peru e uma considerável evasão de outros do Pará para o território da Guiana Francesa ou para o terreno contestado do Amapá. 4

Como vemos, os escravos fugidos se acoitavam naqueles países onde não havia mais escravidão, criando, em conseqüência, vários problemas diplomáticos. Por tudo isto, a quilombagem – até hoje estudada como um elemento secundário, esporádico ou mesmo irrelevante durante a escravidão –, à medida que os cientistas sociais avançam nas suas pesquisas, demonstra ter sido um elemtno dos mais importantes no desgaste permanente, quer social, econômico e militar, no processo de substituir-se o trabalho escrevo pelo assalariado.

1

MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. 4. ed. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1988, p. 103.

2

Sobre a história e organização interna de Palmares ver: MOURA, Clóvis. Quilombos; resistência ao escravismo. São Paulo, Ática, 1987, p. 38-63. Idem. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo, Ática, 1988, p. 159-86. FREITAS, Décio. Palmares; a guerra dos escravos. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1984, passim.

3

Fizemos há algum tempo uma listagem dos principais quilombos conhecidos no nosso livro Os quilombos e a insurreição negra. São Paulo, Brasiliense, 1981. Depois, novas pesquisas nos levaram a ampliar a lista primitiva e indicar novas fontes, conforme podemos ver.

4

BASTOS, Tavares. Resposta a uma carta de Chamerovow da Antislavery Society. In: CARNEIRO, Edison. Antologia do negro brasileiro. Porto Alegre, Globo, 1950, p. 29.