A decadência da escravidão e a crise do sistema

No ano de 1850 é extindo o tráfico de escravos da África para o Brasil. Esse fato marcará profundamente os destinos da escravidão. Com tal medida restritiva a população negro-africana deixa de entrar, através dos vários portos de desembarque, como componente demográfico no território brasileiro. Levando-se em conta, como já vimos, que a média de vida útil do escravo era de 7 a 10 anos, podemos ver facilmente que a população negra tende a decrescer, pois ela não podia recompor-se e alcançar índices de natalidade capazes de repor o número de escravos que morriam.

Inicia-se, assim, a crise do sistema escravista. A essa causa demográfica juntavam-se outras igualmente importantes. O açúcar, mercadoria de exportação que dera prosperidade à área de trabalho escravo no Nordeste, entrara em decadência no mercado mundial. O mesmo fenômeno de decadência também se manifestara em Minas Gerais e Goiás, pois a avidez da metrópole exaurira em menos de dois séculos quase toda a riqueza do subsolo daquela área. Grande parte da população escrava, por seu turno, continuava a sua trajetória de rebeldia. A fuga permanente do escravo que exigia a manutenção de um aparelho repressivo e de captura permanente também onerava o custo de produção.

Por outro lado, na segunda metade do século XIX uma nova cultura aparece no Sudeste com um dinamismo que surpreende e, ao mesmo tempo, exige uma quantidade cada vez maior de mão-de-obra: o café. Não havendo a possibilidade de importação de africanos, os fazendeiros do café Rio de Janeiro, São Paulo e Minas no início do surto usam o recurso de importar o negro escravo de outras províncias que já se encontravam decadentes, como Pernambuco, Bahia e Ceará.

Essa necessidade de importação interprovincial desarticula novamente a população negra, que é deslocada para as novas áreas prósperas, muitas vezes vendo fragmentada a sua família, pois os seus membros podiam ser vendidos para senhores diferentes.

Esse novo deslocamento da população negra escrava estava, por isto, subordinado aos senhores. Escreve neste sentido Emília Viotti da Costa:

Foi o café o grande responsável pelo aumento do número de escravos e pela modificação das estatísticas. São Paulo passará com o Rio e Minas a deter, em 1887, 50% da população escrava do país. Os lavradores que avançavam pelo interior do vale fluminense e se fixavam nas terras paulistas e mineiras não encontravam outra solução para o problema da mão-de-obra. 1

Durante o sistema do Brasil-Colônia, a escravidão se estruturava em toda a sua plenitude. De um lado, a população escrava aumentava a baixo preço através do tráfico, e, de outro, a produção para exportação praticamente não tinha concorrência no mercado mundial. Havia uma concordância de fatores positivos. O negro não apenas trabalhava, mas era mercadoria que podia ser vendida a qualquer momento, muitas vezes com lucro compensador. A reposição da peça que morria era feita quase sem ônus para o senhor em face do seu baixo preço.

Agora, não. O senhor na economia cafeeira tinha de enfrentar um novo universo. O escravo já não era mais aquela mercadoria barata e facilmente substituível, mas, pelo contrário, devia ser protegida, pois a sua inutilização iria onerar o custo da produção. O imigrante, cuja presença se fará sentir, não tinha aptidão para o tipo de trabalho como ele era praticado nas fazendas cafeeiras. Ademais, era muito mais caro que o escravo, mesmo este tendo sido revalorizado como mercadoria, apéos a abolição do tráfico. Desse conjunto de circunstâncias surge uma realidade nova: de um lado aumenta a demanda internacional pelo café e, de outro, aumenta o preço do escravo internamente. Isto levará a que alguns segmentos, mercantis ou com capitais paralisados com a extinção do tráfico, se organizem no sentido de suprir a procura de braços. Mas, como esses segmentos visavam a uma taxa de lucro elevada e altamente compensadora, não irão recrutar o trabalhador nacional não-branco e em particular o trabalhador negro. Essa mão-de-obra é descartada já antes da Abolição, e se cria o mito da superioridade do trabalho branco importado que traria, consigo, os elementos culturais capazes de civilizar o Brasil. Mas, enquanto essa campanha imigrantista não conseguia estruturar-se definitivamente, o preço do negro escravo aumentava no mercado.

De perseguido a protegido

Em conseqüência, o capital investido no negro devia ser protegido, e surgem as primeiras leis protetoras. Se antes, conforme já vimos, as leis contra o escravo eram quase toads despóticas e terroristas, nessa fase da escravidão ele passa a ser protegido. A Lei do Sexagenários, a do Ventre-Livre, a extinção da pena de açoite, a proibição de se venderem para senhores membros da mesma família escrava e outras são mecanismos que protegem mais a propriedade do senhor do que a pessoa do negro escravo. A Lei do Sexagenários, por exemplo, serviu para descartar a população escrava não produtiva, que apenas existia como sucata e dava despesas aos seus senhores. A Lei do Ventre-Livre condicionava praticamente o ingênuo a viver até os vinte anos numa escravidão disfarçada trabalhando para o senhor.

A crise do sistema escravista entrava em sua última fase. Do ponto de vista estritamente econômico, capitais de nações européias mais desenvolvidas no sistema capitalista investiam nos ramos fundamentais, como transportes, iluminação, portos e bancos, criando uma contradição que irá aguçando-se progressivamente entre o trabalho livre e o escravo. Tudo isso irá culminar com a Guerra do Paraguai, na qual os negros serão envolvidos na sua grande maioria compulsoriamente, nela morrendo cerca de 90000. Aqueles que fugiram ao cativeiro, apresentando-se como voluntários, acreditando na promessa imperial de libertá-los após o conflito, foram muitos deles reescravizados.

Essa grande sucção de mão-de-obra negra, provocada pela Guerra do Paraguai, abriu espaços ainda maiores para que o imigrante fosse aproveitado como trabalhador. Essa tática de enviar negros à guerra serviu, de um lado, para branquear a população brasileira e, de outro, para justificar a poplítica imigrantista que era patrocinada por parcelas significativas do capitalismo nativo e pelo governo de D. Pedro II.

Nessa fase poderemos ver duas tendências demográficas da população negra, escrava ou livre: a) decréscimo numério em conseqüência da guerra e do envelhecimento e falecimento de grande parte dos seus membros; b) concentração dessa população nas províncias de Minas, Rio de Janeiro e São Paulo.

Nas demais províncias vemos uma economia estagnada, com uma população negra incorporando-se aos tipos regionais de exploração camponesa, pois os senhores não tinham excedentes monetários para investir na dinamização dessa economia decadente. O negro é, assim, naquelas áreas, incorporado, conforme já analisamos antes, a uma economia de miséria. 2

Decomposição do sistema e comportamento senhorial

Dessa forma, na passagem da crise para decomposição do sistema escravista, temos duas vertentes econômicas e de comprotamento dos senhores. A primeira era a dos que habitavam a região decadente e estagnada do Nordeste e Norte, com uma economia sem possibilidades de recuperar-se nem mesmo a longo prazo, uma população escrava que mais onerava que produzia e uma população de negros livres participantes de uma economia camponesa de escassa rentabilidade, com culturas alternativas ou de subsistência. A segunda era a tendência dos fazendeiros de café de parte de Minas, do Vale do Paraíba e outras áreas de São Paulo e Rio de Janeiro, que entravam agressivamente no mercado mundial com a defasagem de produzir essa mercadoria ainda através do trabalho escravo, o que era um anacronismo.

Tudo isso levava a que se pensasse em outro tipo de organização do trabalho.

No Brasil, ao se pensar em novo tipo de organização do trabalho, por mecanismos ideológicos elitistas, pensava-se, também, em outro tipo de trabalhador. E aqui se cruzam os preconceitos racistas das nossas elites com os interesses mercantis daqueles segmentos da burguesia nativa que se organizaram e investiram para explorar a empresa imigrantista.

Essas razões que configuram a crise estrutural do escravismo fizeram com que, a partir de 1871, o movimento abolicionista se organizasse em pequenos grupos de boêmios e intelectuais influenciados por idéias liberais mais radicais. Nabuco, registrando o início desse movimento, escreve que

Não há muito se fala no Brasil em abolicionismo e Partido Abolicionista. A idéia de suprimir a escravidão, libertando os escravos existentes, sucedeu à ideia de suprimir a escravidão, entregando-lhe o milhão e meio de homens que ela se achava de posse em 1871 e deixando-a acabar com eles. Foi na legislatura de 1879/80 que, pela primeira vez, se viu dentro e fora do Parlamento um grupo de homens fazer da emancipação dos escravos, não da limitação do cativeiro às gerações atuais, a sua bandeira política, a condição preliminar dos partidos.

A história das posições que a Escravidão encontrara até então pode ser resumida em poucas palavras. No período anterior à Independência e nos primeiros anos subseqüêntes, houve, na geração trabalhada pelas idéias liberais do começo do século, um certo desassossego de consciência pela necessidade em que ela se viu de realizar a emancipação nacional, deixando grande parte da população em cativeiro pessoal. Os acontecimentos políticos, porém, absorveram a atenção do povo, e, com a revolução de 7 de abril de 1831, começou o período de excitação que durou até a Maioridade. Foi somente no Segundo Reinado que o progresso dos costumes públicos tornou possível a primeira resistência séria à Escravidão. 3

Somente quando o escravismo entra em crise estrutural, crise que tem início com a extinção do tráfico, começa-se a pensar de forma difusa, esporádica e utópica na idéia da emancipação dos escravos. Mas, somente depois de 1880, segundo o próprio Nabuco, é que o abolicionismo aparece como um movimento que apresenta uma proposta política. Como vemos, a dinâmica radical anterior a esse movimento contra a escravidão partiu dos próprios escravos, através da quilombagem.

Nessas circunstâncias o povo, especialmente os grupos residentes nas áreas urbanas, acoitava os escravos fugidos. As leis contra esses atos não eram mais aplicadas. Em 1883, funda-se a Confederação Abolicionista, que atuará nacionalmente. O Clube Militar, em 1887, através do seu presidente, mostra as desvantagens de o Exército caçar negros fugidos, como queria o governo imperial. Diz a carta enviada ao então ministro da Guerra Manuel Antônio da Fonseca da Costa:

Il.mo Ex.mo Marechal do Exército Visconde da Gávea. Não é tanto pela voz da caridade, da humanidade, da justiça, e da razão que o Clube Militar, de que sou órgão, dá esse passo. Não é tanto pela redenção dos cativos que, hoje, opor barreiras à forte corrente abolicionista é imprudência, hoje que se faz ouvir a voz da Igreja de Cristo, hoje que os supremos ministros de Deus-homem, de Deus da caridade, afinal, falam o que há muito deviam clamar.

Não é tanto pela injustiça clamorosa do morticínio decretado a homens que buscam a liberdade sem combates nem represálias; é pelo papel menos decoroso, menos digno que se quer dar ao Exército.

O Exército é para a guerra leal, na defesa do Trono e da Pátria, para outros afazeres que necessitam força armada há a polícia, que alistou-se para esse fim.

A V. Ex.a, pois, venho pedir que se digne dar andamento ao requerimento junto que tenho a honra de passar às mãos de V. Ex.a, porquanto o serviço – pegar negros fugidos – pelo Exército, se para uns é fácil e agradável, para outros é repugnante e pode tornar-se improfícuo; neste segundo caso, cuja verdade é o não-cumprimento de ordens, embora salvas as aparências, há prejuízos, perda da força moral e inconveniência à disciplina, conquanto seja a falta cometida de difícil, senão impossível prova.

O serviço – pegar negros fugidos – é congênere, em tudo e por tudo, ao antigo – captura de negros novos – em que também não havia cumprimento de ordens. sendo a diferença única essa de que então as ordens eram dadas no sentido de se falhar a diligência, e o resultado quase sempre era o contrário, fazia-se a captura; hoje quer-se a captura, e o resultado será a falha.

Dir-se-á que nada temos com isso; é um engano, porque somos soldados e vemos as mesmas inconveniências disciplinares e perseguições como as que se davam antigamente, quer em relação ao não-cumprimento de ordem, quer sobre a ação contra o oficial que fazia a captura desejada.

V. Ex.a tenha paciência e aceite o requerimento, onde aproveito a ocasião para patentear a adesão e fidelidade ao nosso bom Imperador e à sua dinastia, que somente conosco, com o Exército e Armada, pode e deve contar. De V. Ex.a at. amigo e camarada muito grato – Marechal-de-Campo Manuel Deodoro da Fonseca – Rio de Janeiro, 25 de outubro de 1887.

Como vemos, foi o Clube Militar, uma sociedade civil de militares, quem recusou o papel de capitão-do-mato, e não o Exército como instituição.

Por outro lado, somando-se a esses fatores, na última fase da escravidão, a simples fuga passiva dos escravos já era suficiente para desestabilizar o sistema ou condicionar psicologicamente os membros da classe senhorial e outras camadas sociais em desenvolvimento. Na fase do que chamamos escravismo tardio, a insegurança na compra de escravos e a pouca rentabilidade do seu trabalho eram suficientes para que os investidores transferissem seus capitais para a especulação. Nesse sentido, escreve Vicente Licínio Cardoso:

Em 1884, em pleno Parlamento, uma confissão gravíssima de Andrade Figueira, traduzindo o abalo das fugas dos escravos em grandes massas, bem diria o perigo do momento: "O povo já perdeu a confiança na única indústria que alimenta a nossa riqueza, a indústria agrícola. Os capitais só procuram emprego em apólices, não enxergando segurança em outra parte". 4

O papel da quilombagem, mesmo na fase do capitalismo tardio, quadno era apenas passiva, conseguia influir na aplicação de capitais, pois a síndrome do medo inibia esses especuladores que passam a procurar outros ramos mais favoráveis e seguros de investimento.

Além dessas causas estruturais, fatores externos levam o sistema escravista a um impasse cuja solução foi a Abolição sem reformas. O dilema se apresentava diante dos fazendeiros: ou aceitavam a Abolição compromissada como o Trono queria, conservando-lhes os privilégios, ou correriam o risco de ver a Abolição feita pelos próprios escravos, através de medidas radicais, como a divisão das terras senhoriais. A concordata foi feita. O problema da mão-de-obra já estava praticamente resolvido com a importação de milhares de imigrantes. O trabalhador nacional descendente de africanos seria marginalizado e estigmatizado. O idela de branqueamento das elites seria satisfeito, e as estruturas arcaicas de propriedade continuariam intocadas.

O negro, ex-escravo, é atirado como sobra na periferia do sistema de trabalho livre, o racismo é remanipulado criando mecanismos de barragem para o negro em todos os níveis da sociedade, e o modelo de capitalismo dependente é implantado, perdurando até hoje.

1

VIOTTI DA COSTA, Emília. Da senzala à Colônia. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966, p. 26.

2

Confrontar: MOURA, Clóvis. O negro; de bom escravo a mau cidadão? Rio de Janeiro, Conquista, 1977, passim.

3

NABUCO, Joaquim. Op. cit., p. 12.

4

CARDOSO, Vicente Licínio. À margem da história do Brasil. 2. ed. São Paulo, Nacional, 1938, p. 155-6.