História do Negro Brasileiro

Série: PrincipioS

Autor: Clóvis Moura, professor do Ensino Superior e Jornalista em São Paulo

Editora: Ática S.A.

Edição: segunda edição

Ano: 1992

ISBN: 85 08 03452 0

Direção

Benjamin Abdala Junior

Samira Youssef Campedelli

Preparação de texto

Sérgio Roberto Torres

Edição de arte (miolo)

Milton Takeda

Divina Rocha Corte

Composição/Diagramação em vídeo

Aristeu Escobar

Capa

Ary Normanha

Antonio Ubirajara Domiencio

Epígrafe

A nossa civilização vem da costa d'África.

– BERNARDO DE VASCONCELOS

O grande povoador

A história do negro no Brasil confunde-se e identifica-se com a formação da própria nação brasileira e acompanha a sua evolução histórica e social. Trazido como imigrante forçado e, mais do que isto, como escravo, o negro africano e os seus descendentes contribuíram com todos aqueles ingredientes que dinamizaram o trabalho durante quase quatro séculos de escravidão. Em todas as áreas do Brasil eles construíram a nossa economia em desenvolvimento, mas, por outro lado, foram sumariamente excluídos da divisão dessa riqueza.

Entretanto, não foi apenas pelo tarbalho que os negros contribuíram para que o Brasil chegasse a ser o que é atualmente. Na cultura que aqui se formava, eles replasmaram os seus padrões culturais de acordo com as necessidades que surgiam. Com isto se autopreservaram, em grande parte, da opressão do sistema escravista.

Esta história começa com a chegada das primeiras levas de escravos vindos da África. Isto se dá por volta de 1549, quando o primeiro contingente é desembarcado em São Vicente. D. João III concedeu autorização a fim de que cada colono importasse até 120 africanos para as suas propriedades. Muitos desses colonos, no entanto, protestaram contra o limite estabelecido pelo rei, pois desejavam importar um número bem superior. Por outro lado, alguns historiadores acham que bem antes dessa data já haviam entrado negros no Brasil. Afirmam mesmo que na nau Bretoa, para aqui enviada em 1511 por Fernando de Noronha, já se encontravam negros no seu bordo. Essa presença, como vemos, confunde-se com a formação da Colônia e, depois, do Império, chegando até os nossos dias.

A consolidação da economia colonial intensificou o tráfico de africanos para o Brasil, especialmente para o Nordeste, onde um tipo de agroindústria se concentrou e floresceu com o cultivo da cana-de-açúcar.

O negro nessa fase é o grande povoador, aquele que chega em ondas sucessivas para preencher os vastos espaços geográficos desocupados. Enquanto o Reino vinha para a aventura da colonização pensando em um breve regresso, deixando, muitas vezes, a família em Portugal, o negro africano sabia que a sua viagem era definitiva e que as possibilidades de voltar não existiam.

O negro dinamiza demograficamente o Brasil

O primeiro (o branco) ou se instalava no comércio, ou lutava para conseguir cartas de sesmaria, terras, finalmente para iniciar suas atividades na agricultura. E para a concessão de sesmarias exigia-se a posse de escravos. Um cronista da época dirá, por isto, que os escravos negros eram as mãos e os pés do Brasil.

Com o deslocamento do eixo econômico da Colônia para o Nordeste, para lá também se concentra o fluxo demográfico de negros vindos da África. Para avaliarmos o crescimento da Colônia com essa entrada permanente de africanos, basta dizer que em 1586 as estimativas davam uma população de cerca de 57000 habitantes – e deste total 25000 eram brancos, 18000 índios e 14000 negros. Segundo cálculo de Santa Apolônia, em 1798, para uma população de 3250000 habitantes, habia um total de 1582000 escravos, dos quais 221000 pardos e 1361000 negros, sem contarmos os negros libertos, que ascendiam a 406000.

Prosseguindo a chegada de africanos, aumentava o seu peso demográfico no total da população brasileira. Para o biênio 1817-1818, as estimativas de Veloso de Oliveira davam, para um total de 3817000 habitantes, a cifra de 1930000 escravos, dos quais 202000 pardos e 1361000 negros. Havia, também, uma população de negros e pardos livres que chegava a 585000. No século XVIII, o qual, segundo o historiador Pandiá Calógeras, foi o de maior importação de africanos, a média teria chegado a 55000 entrados anualmente. Essa massa populacional negro-africana, embora concentrando-se especialmente na região nordestina, se espraiará, em maior ou menor quantidade, por todo o terriório nacional.

Embora não tenhamos possibilidades de estabelecer o número exato de africanos importados pelo tráfico, podemos fazer várias estimativas. Elas variam muito e há sempre uma tendência de se diminuir esse número, em parte por falta de estatísticas e também porque muitos historiadores procuram branquear a nossa população. Essas discussões sobre o número de africanos entrados no Brasil se reacenderam quando se procurou quantificar essa população africana escrava, e posteriormente a afro-brasileira, para com isto estabelecer-se o padrão do que se poderia chamar o homem brasileiro.

A apuração da nossa realidade étnica excluiria o branco como representativo do nosso homem. Daí se procurar subestimar o negro no passado e a sua significação atual.

Essas estimativas variam desde a do historiador Rocha Pombo, que calcula em 10000000 o número de negros africanos entrados, às de Renato Mendonça, que afirmou ter sido de 4830000. Esse autor, que fez os seus cálculos baseado em estatísticas aduaneiras, não sabemos apoiados em que critérios, pois desde 1831 o tráfico era considerado ilegal, elaborou o segundo quadro:

NÚMERO DE ESCRAVOS ENTRADOS NO BRASIL (avaliação feita baseada em estatísticas aduaneiras)

PeríodoRegiãoEntradas anuaisTotal ânuoTotal da importação
século XVItodo o Brasil30000
século XVIIBrasil holandês300080008000
século XVIIIPará
Recife
Bahia
Rio de Janeiro
600
5000
8000
12000
250002500000
século XIX (até 1850)Rio de Janeiro20000500001500000
durante o tráfico4850000

Fonte: MENDONÇA, Renato. A influência africana no português do Brasil. São Paulo, Nacional, 1935.

Esses dados, como se pode facilmente compreender, são inexatos e/ou incompletos. O problema do contrabando obviamente não foi computado como uma variável a ser considerada. Mas o certo é que quase 40% do total de africanos retirados do Continente Negro durante a existência do tráfico foram desembarcados no Brasil. Conforme dissemos, ele se distribuiu por todo o território nacional.

Em 1819, pelas estatísticas de Veloso de Oliveira, assim se distribuía a nossa população nacionalmente, segundo o quadro apresentado por Calógeras.

ProvínciasLivresEscravosTotal% de escravos
Amazonas1331060001935031,6
Pará909013300012390126,6
Maranhão6666813333220000066,6
Piaui48321124056072620,3
Ceará1457315543220117027,6
Rio Grande do Norte6181291097092112,8
Paraíba79725177239644817,4
Pernambuco2738329763337145526,3
Alagoas690944287911197338,3
Sergipe887832621314199622,8
Bahia33064914726347791230,8
Espírito Santo52573202727284527,7
Rio de Janeiro e a corte36394014606051000023,4
São Paulo1606567766723832332,6
Paraná49251101915944217,2
Santa Catarina3485991724403121,9
Rio Grande do Sul63927282539218030,7
Minas Gerais46334216854363188526,9
Goiás36368268006316842,5
Mato Grosso23216141803739638,6

Fonte: RAMOS, Artur. Introdução à antropologia brasileira. Rio de Janeiro, Casa do Estudante do Brasil, 1943.

Presença nacional do negro

Segundo fica demonstrado por estes dados que refletem a distribuição nacional da população negra, esta foi, apesar da sua condição de inferioridade econômica e social, a grande povoadora do nosso território. E não apenas povoou, mas criou pequenas comunidades rurais em todo o território nacional atravéis de quilombos, fundando núcleos populacionais, muitos dos quais existem até hoje.

Por ter sido a escravidão um fato de ordem nacional, a presença do negro, escravo ou livre, também se espalhou nacionalmente. Em 1872, quando a população negra escrava já em declínio, os escrqvos constituíam 15,2% da população do país, nenhuma região tinha menos de 7% de habitantes escravos e a taxa mais alta era de apenas 19,5%. Podemos por esses dados ver, de um lado, a expressão nacional da população negra escrava e, de outro, a progressiva diminuição dessa população percentualmente em relação ao século precedente. Convém salientar, porém, que nessa estatística não foi computada a população negra livre, o que aumentaria em muito esses percentuais.

Mas o certo é que o negro (quer escravo, quer livre) foi o grande povoador do nosso território, empregando o seu trabalho desde as charqueadas do Rio Grande do Sul aos ervais do Paraná, engenhos e plantações do Nordeste, pecurária na Paraíba, atividades extrativas na Região Amazônica e na mineração de Goiás e Minas Gerais. O negro não apenas povoou, mas ocupou os espaços sociais e econômicos que, através de seu trabalho, dinamizavam o Brasil.

A produção de uma economia colonial, e por isso destinada a um mercado externo cada vez maior, era fruto desse trabalho negro-escravo. E essa economia, que passa pela produção açucareira, pela mineração, produtos tropicais e termina na fase do café, é feita pelo engro. No entanto, esse fato não contribui em nada para que ele consiga um mínimo dessa renda em proveito próprio. Pelo contrário. Toda essa produção é enviada para o exterior, e os senhores de escravos ficam com todo o lucro da exportação e comercialização.

Houve, de um lado, uma demanda mundial pelos produtos aqui produzidos, mas, de outro, uma impossibilidade estrutural de os produtores dessa riqueza participarem e se beneficiarem dela.

Isto ocorreu durante todo o tempo em que perdurou o regime escravista. Após 1530, quando se pode falar realmente em colonização, com engenhos montados em São Vicente, iremos encontrar um dinamismo crescente na produção colonial brasileira. No século XVI a nossa produção já era superior à América espanhola. Os cronistas quinhentistas mais representativos, como Fernão Cardim, Gabriel Soares de Souza e o padre Anchieta, avaliam a cifra de 300000 arrobas para a produção anual do açúcar brasileiro, o que daria uma renda per capita das mais altas do Brasil em todos os tempos. No outro século essa produção se duplica. No entanto, como já dissemos, a grande população negra escrava não participava da divisão dessa riqueza, sendo considerada igual aos animais e assim tratada.

Deslocamento para as áreas de trabalho

Se isto aconteceu no período da produção açucareira, a mesma coisa iremos constatar no período da mineração. Minas Gerais desponta e consegue o seu apogeu até o último quartel do século XVIII, como uma nova e florescente etapa da exportação colonial, a mais importante, segundo as autoridades de Portugal.

O negro é deslocado para preencher os vazios demográficos dessa nova faixa de trabalho. Não levas apenas o seu trabalho, contudo, mas a sua cultura, ensinando técnicas de metalurgia e mineração, aperfeiçõando métodos de trabalho, extraindo o ouro, procurando diamantes para proporcionar a riqueza dos contratadores e da Coroa portuguesa. O negro escravo em Minas Gerais, por questões particulares, sofre as mais violentas formas de controle no trabalho, é vigiado diariamente. Quando fugira, tinha toda uma milícia de capitães-do-mato para persegui-lo. Mesmo assim conseguia extrair do subsolo mineiro toda a riqueza que foi enviada para Portugal e se destinava ao pagamento da dívida que a metrópole havia contraído com a Inglaterra.

Por outro lado, o decréscimo da população negra escrava depois de 1850, quando é extindo o tráfico, deve-se à sua grande mortalidade, pois, segundo cálculos confiáveis, a média de "vida útil" do escravo era de 7 a 10 anos. Mesmo assim, a sua influência povoadora em toda a extensão geográfica do Brasil se fez e se faz sentir, conforme demonstram todos os recenseamentos que foram feitos, incluindo o último, de 1980. O negro foi o grande povoador da nação brasileira durante a sua evolução social e histórica.

Por isto salientamos, aqui, o seu papel como semeador de cidades, através da formação de núcleos quilombolas em âmbito nacional, tendo-se notícias desses algomerados rebeldes desde o Amazonas até o Rio Grande do Sul, conforme veremos oportunamente.

O negro escravo no Brasil-Colônia

Esse grande povoador do Brasil que foi o negro, povoou-o, porém, em condições desfavorabilíssimas, pois o fez na condição de escravo. O auge do escravismo coincide com o auge da exportação do açúcar para o mercado internacional. Este montante de produção, para que houvesse equilíbrio, necessitava externamente de um comprador que o consumisse todo e, internamente, de homens que trabalhassem para gerá-lo em condições de dar lucros compensadores aos senhores de engenho.

Durante o período do Brasil-Colônia, quando chega ao seu explendor a produção açucareira, registra-se também o pico da importação de negros escravos. Mas essa produção era conseguida através de normas de trabalho estabelecidas pela classe senhorial e pelas estruturas de poder da época. E cabe perguntar: em que condições os escravos produziam essa riqueza?

As descrições de testemunhas variam, mas a realidade na sua essência é uma só: o negro escravo vivia como se fosse um animal. Não tinha nenhum direito, e pelas Ordenações do Reino podia ser vendido, trocado, castigado, mutilado ou mesmo morto sem que ninguém ou nenhuma instituição pudesse intervir a seu favor. Era uma propriedade privada, propriedade como qualquer outro semovente, como o porco ou o cavalo. Um dos observadores dessa época, Antonil, assim descreveu as condições sob as quais o escravo negro trabalhava:

No Brasil costumam dizer que para o escravo são necessários três pês, a saber: pão, pau e pano. E posto que comecem mal, principiando pelo castigo, que é o pau; contudo provera a Deus, que tão abundante fosse o comer, e o vestir, como muitas vezes é o castigo dado por qualquer cousa pouco provada ou levantada; e com instrumentos de muito rigor, ainda quando os crimes são certos; de que se não usa nem com brutos animais, fazendo algum senhor mais caso de um cavalo, que de meia dúzia de escravos; pois o cavalo é servido, e tem quem lhe busque capim, tem pano para o suor e freio dourado 1.

Como o escravo se alimentava e era castigado

A alimentação, por seu turno, não era a de fartura que alguns autores descrevem, quando afirma que o negro era o elemento mais bem-alimentado do Brasil colonial. Pelo contrário. Vilhena, descrevendo o tipo de alimentação do escravo e o comportamento dos seus senhores no particular, pinta uma situação de calamidade alimentar, pois alguns desses nem comida davam aos seus cativos. No final do século SVIII ele assim descreve a situação dos escravos no particular:

[...] dever-se-ia de justiça e caridade providenciar sobre o bárbaro e cruel e inaudito modo como a maior parte dos senhores tratam os desgraçados escravos de trabalho. Tais há que não lhes dando sustento algum lhes facultam somente trabalharem no domingo ou dia santo em um pedacinho de terr a que chamam "roça" para daquele trabalho tirarem seu sustento para toda a semana acudindo somente com alguma gota de mel, o mais grosseiro, se é tempo de moagem. 2

Ainda sobre o mesmo assunto, Ademar Vidal, baseado em uma testemunha da época, afirma que

A comida era jogada ao chão. Seminus, os escravos dela se apoderavam num salto de gato, comida misturada com areia, engolindo tudo sem mastigar porque não havia tempo a esperar diante dos mais espertos e mais vorazes. 3

A jornada de trabalho era de catorze a dezesseis horas, sob a fiscalização do feitor, que não admitia pausa ou distração. Quando um escravo era considerado preguiçoso ou insubordinado, aí vinham os castigos. O feitor, ou um escravo por ele designado, era o executor da sentença. Conforme a falta, havia um tipo de punição e de tortura. Mas a imaginação dos senhores não tinha limites, e muitos criacam os seus métodos e instrumentos de tortura próprios. Mas de modo geral eram esses os principais instrumentos de tortura, aviltamento ou disciplina de trabalho:

instrumentos de captura e contençãoinstrumentos de suplícioinstrumentos de aviltamento
correntes, gonilha ou golilha, gargalheira, tronco, vira-mundo, algemas, machos, cepo, corrente e peia.máscaras, anjinhos, bacalhau, palmatória.gonilha, libambo, ferro para marcar, placas de ferro com inscrições infamantes.

Segundo Artur Ramos, a quem vemos o esquema acima:

Esta classificação é evidentemente forçada e tem um interesse meramente didático. Os instrumentos de captura convertem-se facilmente em instrumentos de suplício, como é fácil deduzir-se. As correntes, os troncos, as algemas e machos visam principalmente à contenção do escravo, para transporte ou para impedir-lhe a fuga. Mas esses instrumentos, provocando a imobilidade forçada, tornam-se um verdadeiro suplício. Ainda mais: qualquer um dos instrumentos de captura ou de suplício tem um aviltamento moral. 4

Os dois instrumentos de suplício mais usados em o tronco e o pelourinho, onde eram aplicadas as penas de açoite. O primeiro podemos colocar ocmo símbolo da Justiça privada, e o segundo como símbolo da Justiça pública. Mas, de qualquer forma, a disciplina de trabalho imposta ao escravo baseava-se na violência contra a sua pessoa. Ao escravo fugido encontrado em quilombo mandava-se ferrar com um F na testa e em caso de reincidência cortavam-lhe uma orelha. 5 O justiçamento do escravo era na maioria das vezes feito na própria fazenda pelo seu senhor, havendo casos de negros enterrados vivos, jogados em caldeirões de água ou azeite fervendo, castrados, deformados, além dos castigos corriqueiros, como os aplicados com a palmatória, o açoite, o vira-mundo, os anjinhos (também aplicados pelo capitão-do-mato quando o escravo capturado negava-se a informar o nome do seu dono) e muitas outras formas de se coagir o negligente ou rebelde.

Na divisão social do trabalho, noventa por cento ou mais dos escravos eram destinados às atividades da agroindústria açucareira, atividades nas minas ou fazendas de café. Os outros eram os chamaos escravos domésticos.

Esses escravos, assim distribuídos na hora do trabalho, finda a faina cotidiana, eram recolhidos às senzalas, onde se amontoavam sem nenhuma condição de higiene ou conforto. Os escravos que não eram do eito e do engenho, da faiscação ou plantação de café, trabalhavam na casa do senhor como mucamas, cozinheiras, cocheiros, carregadores de liteiras, transportadores de tigres, limpadores de estrebarias, moleques de recado, doceiras, amas-de-leite, parteiras, carregadores de lenha e inúmeras outras ocupações que faziam funcionar a casa-grande.

Toda essa população que vivia literalmente excluída de qualquer direito político constituía a única fonte produtora de bens, sob a coerção extra-econômica que a sua condição de semovente permitia. Como vemos, o escravo era o trabalhador fundamental de uma economia que exigia uma técnica muito complexa, pois não era apenas uma economia extrativa, mas uma agroindústria cuja diversificação interna do trabalho era bem acentuada.

... Do eito para a senzala ...

Antonil assim descreve a sociedade escravista na época do Brasil-Colônia:

Toda a escravatura (que nos maiores engenhos passa o número de 150 a 200 peças contando as dos partidos) quer mantimentos e fardas, medicamentos, enfermaria e enfermeiro; e para isso são necessárias roças de muitas mil covas de mandioca. Querem os barcos, velames, cabos, cordas e breu. Querem as fornalhas que por sete ou outo meses ardem de dia e de noite, muita lenha; e para isto é mister dois barcos velejados, para se buscar no portos, indo um atrás do outro sem parar, e muito dinheiro para a comprar; os grandes matos, os muitos carros, e muitas juntas de boi para se trazer. Querem os canaviais também suas barcas, e carros com dobradas equipações de bois. Querem enxadas e foices. Querem as serrarias machados e serras. Quer a moencia de toda a casta de paus de lei sobressalente, e muitos quintais de aço e de ferro. Quer a carpintaria madeiras seletas e fortes para esteios, vigas aspas e rodas; e pelo menos os intrumentos mais usuais, a saber: serras, trados, verrumas, compassos, réguas, escopros, enxós, goivas, machados, martelos, cantins e junteiras, pregos e plainas. Quer a fábrica de açúcar faróis, e caldeiras, tachas e bacias, e outros muitos instrumentos menores, todos de cobre. [...] São finalmente necessários, além das senzalas dos escravos e além da morada do capelão, feitores, mestre, purgador, banqueiro e caixeiro, uma capela decente com seus ornamentos, todo o aparelho do altar, e umas casas para o senhor de engenho com seu quarto separado paraos hóspedes, que no Brasil, falto totalmente de estalagens, são contínuos; e o edifício do engenho, forte e espaçoso, com as mais oficinas, e a casa de purgar, caixaria, alambique e outras cousas, que por miúdas aqui se escusa apontá-las e delas não se falará. 6

Ese longo período é muito elucidativo, pois mostra, muito bem, pelos instrumentos enumerados na primeira parte, como o negro escravo atuava em todos os níveis da divisão do trabalho, não apenas plantando e/ou colhendo cana, mas participando das técnincas e profissões exigidas para a prosperidade e o dinamismo dos engenhos. Na segunda parte, por outro lado, vemos o grande número de pessoas que se beneficiavam, direta ou indiretamente, desse trabalho, com todo um rosário de membros parasitários, indo dos funcionários fiscalizadores, padres, hóspedes e parentes até especialmente o senhor de escravos.

Neste mundo economicamente fechado, duranteo Brasil-Colônia somente quem trabalhava era o negro escravo. O fausto dessa economia, que permitia aos senhores importarem seda e vinhos da França e o seu comportamento de verdadeiros nababos, tinha como único suporte o trabalho da escravaria, que vivia sob as formas mais violentas de controle social, num clima de terrorismo permanente, ou se rebeleva e fugia para as matas, organizando quilombos, onde reencontrava a sua condição humana.

1

ANTONIL, André João. Cultura e opulências do Brasil. Salvador, Progresso, 1950, p. 55.

2

VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador, Itapoã, 1969. 3v., v. 1, p. 185. Recompilação de notícias soteropolitanas e brasílicas.

3

VIDAL, Ademar. Costumes e práticas do negro. In: II CONGRESSO AFRO BRASILEIRO SALVADOR, 1937. O negro no Brasil. São Paulo. Civilização Brasileira. 1940, p. 37.

4

RAMOS, Artur. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro, Nacional, 1942, p. 110.

5

O texto desse alvará encontra0se em: MOURA, Clóvis. Quilombos; resistência ao escravismo. São Paulo, Ática, 1988, p. 20.

6

ANTONIL, André João. Op. Cit., p. 18-9.

A quilombagem como agente de mudança social

Entendemos por quilombagem o movimento de rebeldia permanente organizado e dirigido pelos próprios escravos que se verificou durante o escravismo brasileiro em todo o território nacional. Movimento de mudança social provocado, ele foi uma força de desgaste significativa ao sistema escravista, solapou as suas bases em diversos níveis – econômico, social e militar – e influiu poderosamente para que esse tipo de trabalho entrasse em crise e fosse sibstituído pelo trabalho livre.

A sua dinâmica expressava a contradição fundamental da época, isto é, aquela que existia entre os escravos e os seus senhores e aparecia, em conseqüência disso, em todas as áreas e épocas em que o sistema de produção escravista foi estabelecido.

A quilombagem é um movimento emancipacionista que antecede, em muito, o movimento liberal abolicionista; ela tem caráter mais radical, sem nenhum elemento de mediação entre o seu comportamento dinâmico e os interesses da classe senhorial. Somente a violência, por isto, poderá consolidá-la ou destruí-la. De um lado os escravos rebeldes; de outro os seus senhores e o aparelho de repressão a essa rebeldia.

O quilombo aparece, assim, como aquele módulo de resistência mais representativo (quer pela sua quantidade, quer pela sua continuidade histórica) que existiu. Estabelecia uma fronteira social, cultural e militar contra o sistema que oprimia o escravo, e se constituía numa unidade permanente e mais ou menos estável na proporção em que as forças repressivas agiam menos ou mais ativamente contra ele. Dessa forma, o quilombo é o centro organizacional da quilombagem, embora outros tipos de manifestação de rebeldia também se apresentassem, como as guerrilhas e diversas outras formas de protesto individuais ou coletivas. Entendemos, portanto, por quilombagem uma constelação de movimentos de protesto do escravo, tendo como centro organiacional o quilombo, do qual partiam ou para ele convergiam e se aliavam as demais formas de rebeldia.

Incluímos, por este motivo, no conceito geral de quilombagem outras manifestações de protesto racional e social, como por exemplo as insurreições baianas do século XIX que culminaram com a grande insurreição de 1835 em Salvador, que tanto pânico provocou entre as autoridades, forças militares e membros da população. Isto se explica não somente porque esses movimentos emancipacionistas escravos se inserem a mesma pauta de reinvidicações dos quilombolas, mas também porque esses negros urbanos contavam como aliados os escravos refugiados nos diversos quilombos existentes na periferia de Salvador. Igualmente deverá ser incluído na quilombagem o bandoleirismo quilombola, os exemplos mais destacados são os de João Mulungu, em Sergipe, e Lucas da Feira, na Bahia, embora inúmeros outros tenham existido durante a escravidão em todo o território nacional.

A quilombagem era, por isto, a manifestação mais importante, que expressava a contradição fundamental do regime escravista. Os senhores de escravos, por outro lado, não desdenhavam a sua importância e se municiavam de recursos (militares, políticos, jurídicos e terroristas) para combatê-la. Essa estratégia senhorial vai das leis da metrópole aplicadas na Colônia, alvarás e outros estatutos repressivos, à formação de milícias de capitães-do-mato, confecção e uso de aparelhos de suplício e outras formas de repressão não-institucionalizadas mas que se haviam transformado em costume.

Em outro local, por essas razões já havíamos escrito que:

O quilombo foi, incontestavelmente, a unidade básica de resistência do escravo. Pequeno ou grande, estável ou de vida precária, em qualquer região onde existia a escravidão, lá se encontrava ele como elemento de desgaste do regime servil. O fenômeno não era atomizado, circunscrito a determinada área geográfica, como a dizer que somente em determinados locais, por circunstâncias mesológicas favoráveis, ele podia afirmar-se. O quilombo aparecia onde quer que a escravidão surgisse. Não era simples manifestação tópica. Muitas vees surpreende pela capacidade de organização, pela resistência que oferece; destruído parcialmente dezenas de vezes e novamente aparecendo em outros locais, plantando a sua roça, construindo suas casas, reorganizando a sua vida social e estabelecendo novos sistemas de defesa. O quilombo não foi, portanto, apenas um fenômeno esporádico. Constituía-se em fato normal da sociedade escravista. 1

O fenômeno da quilombagem, achamos nós, tem como epicentro o quilombo, mas nele podem ser englobadas todas as manifestações de resistência da parte do escravo.

A prática da quilombagem

Por esses motivos é um movimento abrangente e radical. Nele se incluem não apenas negros fugitivos, mas também índios perseguidos, mulatos, curibocas, pessoas perseguidas pela polícia em geral, bandoleiros, devedores do fisco, fugitivos do serviço militar, mulheres sem profissão, brancos pobres e prostitutas.

Era um cadinho de perseguidos pelo sistema colonial. Era no quilombo ou nas demais manifestações da quilombagem que essa população marginalizada se recompunha socialmente. Por tudo isto a quilombagem tem uma dimensão nacional, conforme já dissemos. Articula-se nacionalmente, desde os primórdios da escravidão, atravessa todo o sistema escravista, desarticulando-o constantemente, e assume, muitas vezes, aspecto ameaçador para a classe senhorial, como no caso da República de Palmares. 2

Não iremos fazer aqui, mais uma vez, um apanhado histórico das organizações quilombolas, nem isto seria possível para um só autor e nas dimensões deste livro. Vamos apenas mostrar o elenco dos principais quilombos conhecidos nos diversos locais nos quais eles se manifestaram. 3

Principais quilombos brasileiros

BAHIA

  1. Quilombo do rio Vermelho
  2. Quilombo do Urubu
  3. Quilombos de Jacuípe
  4. Quilombo de Jaguaribe
  5. Quilombo de Maragogipe
  6. Quilombo de Muritiba
  7. Quilombos de Campos de Cachoeira
  8. Quilombos de Orobó, Tupim e Andaraí
  9. Quilombos de Xiquexique
  10. Quilombo do Buraco do Tatu
  11. Quilombo de Cachoeira
  12. Quilombo de Nossa Senhora dos Mares
  13. Quilombo do Cabula
  14. Quilombos de Jeremoabo
  15. Quilombo do rio Salitre
  16. Quilombo do rio Real
  17. Quilombo de Inhambupe
  18. Quilombos de Jacobina até o rio São Francisco

Nota: Stuart B. Schwartz conseguiu listar 35 quilombos na região da Bahia entre os séculos XVII, XVIII e XIX.

Fontes: diversas, coordenadas pelo autor. Especialmente: PEDREIRA, Pedro Tomás. Os quilombos baianos. Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, 1962. 24(4), out./dev. SCHWARTZ, Stuart B. Mocambos, quilombos e Palmares; a resistência escrava no Brasil colonial. Estudos Econômicos. São Paulo, 1987, n. 1. Número especial.

MARANHÃO

  1. Quilombo da lagoa Amarela (Preto Cosme)
  2. Quilombo do Tiriaçu
  3. Quilombo de Maracaçumé
  4. Quilombo de São Benedito do Céu
  5. Quilombo do Jaraquariquera

Fontes: várias, coordenadas pelo autor.

MATO GROSSO

  1. Quilombo nas vizinhanças do Guaporé
  2. Quilombo da Carlota (denominado posteriormente Quilombo do Piolho)
  3. Quilombos à margem do rio Piolho
  4. Quilombo de Pindaituba
  5. Quilombo do Motuca
  6. Quilombo de Teresa do Quariterê

Fonte: Correspondência do Conselho Ultramarino, 1777. Códice 246. Apud PINTO, Roquete. Rondônia. São Paulo, 1950.

MINAS GERAIS

  1. Quilombo do Ambrósio (Quilombo Grande)
  2. Quilombo do Campo Grande
  3. Quilombo do Bambuí
  4. Quilombo do Andaial
  5. Quilombo do Careca
  6. Quilombo do morro de Angola
  7. Quilombo do Paraíba
  8. Quilombo do Ibituruna
  9. Quilombo do Cabaça
  10. Quilombo de Luanda ou Lapa do Quilombo
  11. Quilombo do Guinda
  12. Lapa do Isidoro
  13. Quilombo do Brumado
  14. Quilombo do Caraça
  15. Quilombo do Inficionado
  16. Quilombos de Suçuí e Paraopeba
  17. Quilombos da serra de São Bartolomeu
  18. Quilombos de Marcela
  19. Quilombos da serra de Marcília

Nota: Carlos Magno Guimarães conseguiu listar 116 quilombos em Minas Gerais no século XVIII.

Fontes: diversas, coordenadas pelo autor. Especialmente: COSTA FILHO, Miguel. Quilombos. Estudos Sociais, Rio de Janeiro, 1960. n. 7, 9, 10. VASCONCELOS, Diogo. História Média de Minas Gerais. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1918. GUIMARÃES, Carlos Magno. Os quilombos do século do ouro; Minas Gerais. Estudos Econômicos, São Paulo, 1988. 18(2).

PERNAMBUCO

  1. Quilombo do Ibura
  2. Quilombo de Nazareth
  3. Quilombo de Catucá (extensão do Cova da Onça)
  4. Quilombo do Pau Picado
  5. Quilombo do Malunguinho
  6. Quilombo de Terra Dura
  7. Quilombo do Japomim
  8. Quilombos de Buenos Aires
  9. Quilombos do Palmar
  10. Quilombos de Olinda
  11. Quilombo do subúrbio do engenho Camorim
  12. Quilombo de Goiana
  13. Quilombo de Iguaraçu

Fontes: diversas, coordenadas pelo autor. Especialmente: MELO, Josemir Camilo de. Quilombos em Pernambuco; século XIX. Revista do Arquivo Público. Recife, 1978. n. 31, 32. FREYE, Gilberto. Nordeste. Rio de Janeiro, José Olympio, 1937.

PARAÍBA

  1. Quilombo do Cumbe
  2. Quilombo da serra de Capuaba
  3. Quilombo de Gramame (Paratuba)
  4. Quilombo do Livramento

Fonte: PORTO, Valdice Mendonça. Paraíba em preto e branco. João Pessoa, s. ed., 1976.

REGIÃO AMAZÔNICA

  1. Amapá: Oiapoque e Calçoene
  2. Amapá: Mazagão
  3. Pará: Alenquer (rio Curuá)
  4. Pará: Óbidos (rio Trombetas e Cuminá)
  5. Pará: Caxiu e Cupim
  6. Alcobaça (hoje Tucuruí), Cametá (rio Tocantins)
  7. Pará: Mocajuba (litorial atlântico do Pará)
  8. Pará: Gurupi (atual divisa entre o Pará e o Maranhão)
  9. Maranhão: Turiaçu (rio Maracaçumé)
  10. Maranhão: Turiaçu (rio Turiaçu)
  11. Pará: Anajás (lagoa Mocambo, ilha de Marajó)
  12. Margem do baixo Tocantins: Quilombo de Felipa Maria Aranha

Fonte: SALLES, Vicente. O negro no Pará. Rio de Janeiro, FGV/UFPA, 1971.

RIO DE JANEIRO

  1. Quilombo de Manual Congo
  2. Quilombos às margens do rio Paraíba
  3. Quilombos na serra dos Órgãos
  4. Quilombos da região de Inhaúma
  5. Quilombos dos Campos de Goitacazes
  6. Quilombo do Leblon
  7. Quilombo do morro do Desterro
  8. Bastilhas de Campos (quilombos organizados pelos abolicionistas daquela cidade)

Fontes: diversas, coordenadas pelo autor.

RIO GRANDE DO SUL

  1. Quilombo do negro Lúcio (ilha dos Marinheiros)
  2. Quilombo do Arroio
  3. Quilombo da serra dos Tapes
  4. Quilombo de Manuel Padeiro
  5. Quilombo do município de Rio Pardo
  6. Quilombo na serra do Distrito do Couto
  7. Quilombo no município de Montenegro (?)

Nota: a interrocação posta depois do quilombo do município de Montenegro significa que as fontes informativas não são conclusivas quanto à sua existência; o quilombo de Manuel Padeiro é chamado, em algumas fontes, de Manual Pedreiro.

Fonte: MAESTRI FILHO, José Mário. O escravo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes/EDUCS, 1984.

SANTA CATARINA

  1. Quilombo da Alagoa (Lagoa)
  2. Quilombo da Enseada do Brito
  3. Outros quilombos menores "que devem ter dado muito trabalho"

Fonte: PIAZZA, Walter. O escravo numa economia minifundiária. São Paulo, Resenha Universitária/UDESC, 1975.

SÃO PAULO

  1. Quilombos dos Campos de Araraquara
  2. Quilombo da cachoeira do Tambau
  3. Quilombos à margem do rio Tietê, no caminho de Cuiabá
  4. Quilombo das cabeceiras do rio Corumateí
  5. Quilombo de Moji-Guaçu
  6. Quilombos de Campinas
  7. Quilombo de Atibaia
  8. Quilombo de Santos
  9. Quilombo da Aldeia Pinheiros
  10. Quilombo de Jundiaí
  11. Quilombo de Itapetininga
  12. Quilombo da fazendo de Monjolinho (São Carlos)
  13. Quilombo de Água Fria
  14. Quilombo de Piracicaba
  15. Quilombo de Apiaí (de José de Oliveira)
  16. Quilombo do Sítio do Forte
  17. Quilombo do Canguçu
  18. Quilombo do termo de Parnaíba
  19. Quilombo da Freguesia de Nazaré
  20. Quilombo de Sorocaba
  21. Quilombo do Pai Felipe
  22. Quilombo do Jabaquara

Fontes: diversas, coordenadas pelo autor.

SERGIPE

  1. Quilombo de Capela
  2. Quilombo de Itabaiana
  3. Quilombo de Divina Pastora
  4. Quilombo de Itaporanga
  5. Quilombo do Rosário
  6. Quilombo do Engenho do Brejo
  7. Quilombo de Laranjeiras
  8. Quilombo de Vila Nova
  9. Quilombo de São Cristóvão
  10. Quilombo de Maroim
  11. Quilombo de Brejo Grande
  12. Quilombo de Estância
  13. Quilombo de Rosário
  14. Quilombo de Santa Luíza
  15. Quilombo de Socorro
  16. Quilombos do rio Contiguiba
  17. Quilombo do rio Vaza Barris

Fontes: FIGUEIREDO, Ariosvaldo. O negro e a violência do branco. Rio de Janeiro, José Álvares, 1977. MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. 4. ed. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1988. MOTT, Luís R. B. Pardos e pretos em Sergipe (1774-1851).. Separata da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, 1976. SAMPAIO, Aluysio. Os quilombos do Contiguiba. Seiva, Salvador, 6(1).

Essa pequena listagem bem demonstra como a quilombagem era um fenômeno nacional. Convém salientar que ele não representa, nem pela quantidade nem pela extensão geográfica, a sua importância social. Os quilombos eram focos de concentração demográfica e, ao mesmo tempo, fator de mobilidade social horizontal permanente. Podemos ver uma corrente migratória quilombola para as fronteiras, especialmente rumo às dos países vizinhos, destacando-se, nesse sentido, a que demandava às goianas. Esse movimento migratório chegou a impressionar e procuapr as autoridades e políticos, tendo Tavares Bastos a ele se referido como um elemento de fraqueza militar. Diz ele nesse sentido:

O governo oriental na última guerra (1864) expedira emissários para sublevarem os escravos do Rio Grande. Na Cruz Alta em Taquari e outros lugares houve por isso tentativas de insurreição. Muñoz e Apparício, chefes orientais, invadindo aquela província proclamaram que vinham dar liberdade aos escravos. O último relatório do Ministério da Justiça atribui a manejos de alguns orientais as tentativas de insurreição em Taim e Taquari.

Além disso, no tempo de paz, a fuga de escravos para os territórios vizinhos e outros fatos promovem conflitos entre as autoridades e amarguraram algumas de nossas questões internacionais. Ainda há pouco, noticia-se do Norte a fuga de escravos do alto Amazonas para o território do Peru e uma considerável evasão de outros do Pará para o território da Guiana Francesa ou para o terreno contestado do Amapá. 4

Como vemos, os escravos fugidos se acoitavam naqueles países onde não havia mais escravidão, criando, em conseqüência, vários problemas diplomáticos. Por tudo isto, a quilombagem – até hoje estudada como um elemento secundário, esporádico ou mesmo irrelevante durante a escravidão –, à medida que os cientistas sociais avançam nas suas pesquisas, demonstra ter sido um elemtno dos mais importantes no desgaste permanente, quer social, econômico e militar, no processo de substituir-se o trabalho escrevo pelo assalariado.

1

MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. 4. ed. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1988, p. 103.

2

Sobre a história e organização interna de Palmares ver: MOURA, Clóvis. Quilombos; resistência ao escravismo. São Paulo, Ática, 1987, p. 38-63. Idem. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo, Ática, 1988, p. 159-86. FREITAS, Décio. Palmares; a guerra dos escravos. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1984, passim.

3

Fizemos há algum tempo uma listagem dos principais quilombos conhecidos no nosso livro Os quilombos e a insurreição negra. São Paulo, Brasiliense, 1981. Depois, novas pesquisas nos levaram a ampliar a lista primitiva e indicar novas fontes, conforme podemos ver.

4

BASTOS, Tavares. Resposta a uma carta de Chamerovow da Antislavery Society. In: CARNEIRO, Edison. Antologia do negro brasileiro. Porto Alegre, Globo, 1950, p. 29.

A variável cultural

Mas o negro não apenas povoou o Brasil e deu-lhe prosperidade econômica através do seu trabalho. Trouxe, também, as suas culturas que deram o ethos fundamental da cultura brasileira.

Vindo de várias partes da África, os negros escravos trouxeram as suas diversas matrizes culturais que aqui sobreviveram e serviram como patamares de resistência social ao regime que os oprimia e queria transformá-los apenas em máquinas de trabalho. Em todas as áreas de trabalho os africanos incorporavam os seus modos de vida – a sua religião, indumentária, cozinha, música, sistemas de regadio e plantação e outras manifestações sociais – àqueles habitantes mais antigos do nosso território, índios e portugueses.

Com a instalação de um governo despótico escravista, capaz de manter a ordem contra as manifestações da quilombagem, as suas diversas culturas foram consideradas primitivas, exóticas e somente consentidas enquanto estivessem sob o controle do aparelho dominador. A exteriorização desses traços culturais somente era permitida como tática de dominação social, isto é, enquanto os negros permanecessem usando-as como manifestações de uma classe dominada. Toda a estrutura desse controle cultural, nas suas diversas gradações, foi racionalizada para que os padrões dessas diversas culturas africanas fossem considerados inferiores.

Por outro lado, dentro do contexto colonial-escravista as religiões africanas eram consideradas especialmente exóticas e, ao mesmo tempo, perigosas. Isto acontecia, em primeiro lugar, em decorrência do monopólio da Igreja Católica nesse nível, pois somente os seus preceitos de explicação do sobrenatural eram considerados verdadeiros. Em segundo, a religião que detinha o monopólio da explicação do sobrenatural tinha poderes, também, de explicar o natural. Daí porque a Igreja Católica procurou, através daquilo que foi chamado posteriormente de sincretismo, penetrar e desarticular o mundo religioso do africano escravizado, usando o método catequista, batizando-o coercivamente, num trabalho de cristinização que nada mais era do que tentativas, via estruturas de poder, de monopolizar o sagrado e influir poderosamente no plano social e político. Esse sincretismo, por isto mesmo, era unilateral. Era um sincretismo de uma só via. A Igreja Católica somente permitia esse chamado processo sincrético de cima para baixo, jamais permitindo a contaminação dos seus princípios teológicos pelas posições animistas, fetichistas, e por isso mesmo primitivas, das religiões dominadas. Com esse sincretismo de uma só via acreditava-se que, dentro de pouco tempo, essas religiões desapareceriam no bojo de um catolicismo popular, o qual seria anexado ao corpo da Igreja Católica.

Cultura de resistência

No entanto, durante a escravidão o negro transformou não apenas a sua religião, mas todos os padrões das suas culturas em uma cultura de resistência social. Essa cultura de resistência, que parece se amalgamar no seio da cultura dominante, no entanto desempenhou durante a escravidão (como desempenha até hoje) um papel de resistência social que muitas vezes escapa aos seus próprios agentes, uma função de resguardo contra a cultura dos opressores.

Toda uma literatura, por essas razões, foi arquitetada e continua funcionando no sentido de mostrar que as religiões africanas, e posteriormente as afro-brasileiras, são inferiores, no máximo consentidas por munificência dos senhores, durante a escravidão, e dos aparelhos de poder das classes dominantes, após a Abolição.

A mesma coisa aconteceu com seus instrumentos rituais, que passaram a ser instrumentos típicos, com as suas manifestações musicais, sua música, indumentária africana, a cozinha sagrada dos candomblés. Tudo isso passou a ser simplesmente folclore. E com isto subalternizou-se o mundo cultural dos africanos e dos seus descendentes. A dominação cultural acompanhou a dominação social e econômica. O sistema de controle social passou a dominar todas as manifestações culturais negras, que tivem, em contrapartida, de criar mecanismos de defesa contra a cultura dominadora.

Sempre a defesa do dominado, do oprimido, do discriminado é ambígua. Aquele que não pode atacar frontalmente procura formas simbólicas ou alternativas para oferecer resistência a essas forças mais poderoas. Dessa forma o sincretismo assim chamado não foi a incorporação do mundo religioso do negro à religião dominadora, mas, pelo contrário, uma forma sutil de camuflar internamente os seus deuses para preservá-los da imposição da religião católica.

O conceito mais abrangente de aculturação, por seu turno, procurou explicar o comportamento atual do negro como sendo fruto do contato contínuo entre o dominador e o dominado, desejando o primeiro impor os seus padrões culturais e o segundo, imitá-los e absorvê-los.

O sistema escravista, pelos métodos de repressão que os seus representantes praticavam, repeliu os valores das culturas dominadas. Em contrapartida, os seus adeptos procuravam disfarçá-los, fazê-los aparecer sob outras formas, mas sempre mantendo o seu significado simbólico inicial. Não havia como fugir à religião oficial, num tempo em que existia o monopólio do poder político e o monopólio do poder religioso, pela classe senhorial e a Igreja Católica respectivamente. Daí o mecanismo de defesa sincrético dos negros.

A mesma coisa aconteceu com as suas línguas. Não possuindo unidade lingüística, os africanos foram obrigados a criar uma que fosse comum para que se pudessem entender. Os povos banto que chegaram em primeiro lugar e aqueles que habitavam a parte sudanesa da África, posteriormente, incorporaram ao nosso léxico milhares de vocábulos na estrutura do português. No entanto, ninguém, ou quase ninguém, viu essa incorporação como um fator de enriquecimento, mas, muito pelo contrário, criou-se a palavra chulo para designar esses vocabulários. A mesma coisa podemos dizer da indumentária, que passou a ser considerada roupa típica; da cozinha, da música, da arquitetura. Todos esses elementos culturais africanos foram classificados como cultura rústica, folclore. Somente a cultura ocidental-cristã tinha o direito de manipular os aparelhos de dominação cultural. Com isto, as manifestações culturais das populações oprimidas, as afro-brasileiras em particular, foram consideradas como elementos marginais à elaboração do ethos nacional.

Autodefesa da cultura oprimida

As culturas africanas, durante a escravidão, e a dos afro-brasileiros, dpeois, diante dessa manobra asfixiadora da classe senhorial e do seu aparelho ideológico, passaram a desempenhar a função de instrumento de autodefesa dos oprimidos social e economicamente. Durante a quilombagem os negros rebeldes encontravam em alguns dos seus padrões culturais elementos de proteção social.

No que concerne às religiões africanas, ou afro-brasileiras por extensão, à sua evolução/transformação no contexto e à sua função social nesse contexto novo, Roger Bastide escreve:

Apesar das condições adversas da escravidão, misturando as etnias, fragmentando as estruturas sociais nativas, impondo aos negros novo ritmo de trabalho e novas condições de vida, as religiões transportadas do outro lado do Atlântico não estão mortas. Vieira exprimia bem esta posição entre a sociedade, dominada e regulada pelas normas portuguesas, e as civilizações, vindas da África, escrevendo que o Brasil "tem o corpo (europeu) na América e a alma da África". Mas as crenças que permanecem confinadas nos segredos dos corações, que se exprimem em ritos e cerimônias, nem tomam formas coletivas de organização, estão fatalmente condenadas à morte. A religião, ou religiões afro-brasileiras foram obrigadas a procurar nas estruturas sociais que lhes eram impostas, "nichos", por assim dizer, onde pudessem se integrar e se desenvolver. Deviam se adaptar a novo meio humano, e nesta adaptação não se iria processar nem profundas transformações da própria vida religiosa. Tornava-se necessário encontrar entre as superestruturas – outrora em conexão com a família, com a aldeia, com a tribo – e as novas infra-estruturas – a grande platação ou centro urbano, a escravidão e a sociedade de castas hierarquizadas dominada pelos senhores brancos – laços ignorados, formas de passagem inéditas, encarnando-se no corpo social, e este, por sua vez, deixando-se penetrar por esses valores diferentes, como modelos ou normas. 1

O que Bastide demonstra, no trecho acima, é que as culturas negras dominadas usaram de diversas estratégias de preservação dos seus valores dentro do contexto social escravista, onde estavam engastas, ou, em outras palavras, criaram mecanismos de defesa contra a escravidão e os seus valores, a partir dos seus próprios valores e padrões culturais. Tanto as culturas banto como as sudanesas que para aqui vieram tinham isto em comum: transformaram-se em anteparos de resistência do escravo na situação especial na qual os seus membros se encontravam. Houve, por isto, uma substituição de função desses padrões culturais, especialmente das suas religiões. O escravo resistia com as armas de que dispunha, e as suas culturas desempenharam um papel muitas vezes apenas simbólico, outras vezes como veículo ideológico de luta na sociedade escravista.

Após a escravidão, os grupos negros que se organizaram como específicos, na sociedade de capitalismo dependente que a substituiu, também aproveitaram os valores culturais afro-brasileiros como instrumentos de resistência.

Isto não quer dizer que se conservassem puros, pois sofrem a influência aculturativa (isto é, branqueadora) do aparelho ideológico dominante. É uma luta ideológico-cultural que se trava em todos os níveis, ainda diante dos nossos olhos. O exemplo das escolas de samba, especialmente no Rio de Janeiro – que perderam a sua especificidade de protesto simbólico espontâneo de antigamente para se institucionalizarem, assumindo proporções d eum colossalismo quantitativo e competitivo antipopular e subordinando-se a instituições ou grupos financiadores que as despersonalizam inteira ou parcialmente do seu papel inicial –, exemplifica o que estamos afirmando.

Mesmo quando a temática é eventualmente de protesto, ela está subordinada a uma concessão ideológica, implícita ou explícita, dos grupos que as dirigem, orientam e patrocinam.

Por outro lado, a dinâmica interna desses grupos encontra combustível ideológico para reagir e criar novos grupos que se articulam dentro de padrões afro-brasileiros independentes e reiniciam a trajetória abandonada pelos grupos negros que se institucionalizaram.

1

BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo, Pioreira, 1971. 2v., v. 1, p. 85.

O negro e sua participação política

O negro não apenas povoou e criou a riqueza nacional, assim como transmitiu a sua cultura, mas, também, participou da sua vida política. Em quase todos os movimentos sócio-políticos que se desenrolaram no Brasil durante a sua trajetória social e histórica, houve a participação, a contribuição do negro escravo ou livre. Sem nos referirmos aos quilombos, que também consideramos movimentos políticos independentes, dos próprios escravos, em todas ou quase todas as lutas que se travaram ou foram projetadas eles estiveram presentes, quer na Colônia, quer no Império, até chegarmos aos dias atuais.

Nas lutas pela expulsão dos holandeses, nas lutas pela Independência e a sua consolidação, na Revolução Farroupilha, nos movimentos radicais da plebe rebelde, como a Cabanagem, no Pará, no Movimento Cabano, em Alagoas, ele esteve presente. Também na Inconfidência Mineira, na Inconfidência Baiana, para lembrarmos mais alguns, a sua presença é incontestável como elemento majoritário ou como participante menor. Após o fim da escravidão e do Império, o negro se incorporará aos movimentos da plebe, como em Canudos, na comunidade do beato Lourenço, e, mais destacadamente, na revolta de João Cândido.

Desde as primeiras lutas sociais no Brasil que o negro, ao delas participar, conseguiu ampliá-las e transformá-las em lutas sócio-raciais. Isto é: colocou um componente novo, abriu o leque de participaçnao e reinvidicações, porque uniu essas lutas de explorados às reivindicações da etnia negra, que além de explorada era discriminada racialmente.

As invasões holandesas e o negro

Durante as invasões e o domínio holandês, os escravos e negros em geral tiveram ativa participação nas lutas restauradoras. O seu comportamento não foi uniforme. Aqueles que assumiram uma posição radical negaram-se a participar dessas lutas. Fugiram para as matas, aproveitando as contradições reinantes, e organizaram quilombos, dos quais os mais importantes se confederaram e criaram a República de Palmares. Mas outra parcela de negros, escravos ou livres, aderiu ao movimento contra a permanência dos holandeses no Brasil. Nesse nível de consciência, o maior líder foi, incontestavelmente, Henrique Dias. Ele liderou negros de diversas origens, muitos deles pertencentes aos latifundiários escravistas, os quais se opunham, por interesses econômicos, ao domínio batavo na colônia portuguesa.

JUá na primeira invasão holandesa, ocorrida em Salvador, em 1964, os negros se comportaram bravamente diante do invasor. No início, os holandeses que ocuparam a cidade também organizaram militarmente os negros que decidiram ficar a seu lado. Segundo depoimento de Johann Gregor Aldengurgk, foram

alguns destinados a trabalhar, e outros, armados de arcos, flechas, velhas espadas espanholas, rodelas, piques e sabres de abordagem, se organizaram numa companhia de negros, para capitão do qual foi escolhido um deles próprios, chamado Francisco. 1

A essa tática dos holandeses, recrutando negros evadidos, revidaram os portugueses com a máxima crueldade. estes organizaram, por seu turno, os escravos de Salvador que não fugiram, para desempenharem funções militares na cidade sitiada. Nessa primeira invasão holandesa de Salvador (1624/1625), o negro participou das escaramuças quer de um lado, quer do outro, mas não teve o projeto de emancipação próprio.

Na segunda invasão realizada no Recide, os negros também atuaram, dessa vez mais prolongada e dinamicamente. Henrique Dias, conforme já dissemos, colocou-se ao lado dos latifundiários de Pernambuco e do governo colonial português. Foi um guerreiro eficiente. Lutou nas batalhas das Tabocas, feriu-se várias vezes e conquistou títulos honoríficos do rei de Portugal. Por outro lado, Calabar deu inúmeras vitórias aos holandeses, também demonstrou um alto espírito militar e grande capacidade de comando, tendo, em determinada fase da luta, feito virar êxitos militares em favor dos batavos.

No entanto, Henrique Dias, após a expulsão dos holandeses, queixar-se-ia ao rei pela forma desrespeitosa e humilhante como ele e seus homens estavam sendo tratados pelas autoridades locais. Calabar, ao ser capturado pelos portugueses e brasileiros, é julgado e condenado à morte, não tendo os batavos feito nenhum esforço para livrá-lo do garote vil.

Somente negros de Palmares, que escolheram a via independente de luta, conseguiram auto-afirmar-se até 1695.

Durante a ocupação holandesa, conforme vimos, os negros se portaram de três formas:

a) fugiram para as matas e organizaram quilombos, sendo o mais famoso aquele que mais durou a República de Palmares;

b) participaram como soldados e guerrilheiros ao lado das tropas luso-brasileiras;

c) lutaram ao lado dos holandeses.

A esses três tipos de comportamento devemos acrescentar o bandoleirismo quilombola, exemplificado nos bosch-negroes (como os holandeses chamavam os negros), que atacavam as estradas, fazendas e engenhos indistintamente, fugindo para as matas após cada surtida.

Sempre querendo a mudança social

Nas lutas que se seguiram à ocupação holandesa ele estará presente, de forma violenta ou pacífica, pouco ou muito significativa, mas sempre atuante.

No movimento de Felipe dos Santos, ocorrido em Vila Rica (Minas Gerais), no ano de 1720, temos notícias da participação de portugueses com os seus engros. No dia 28 de junho de 1720, sete mascarados, juntamente com muitos pretos armados, desceram do morro onde se encontravam, invadindo e depredando casas. Em seguida intimaram o governador a não abrir mais novas casas de fundição, símbolo do terrorismo do fisco naquela época.

Também da Inconfidência Mineira, embora não se possa chamar esse movimento de abolicionista, os escravos negros participaram. João Álvares Maciel, filho de um capitão-mor de Vila Rica, ao depor nos autos de devassa, confessa que "sendo o número de homens pretos e escravatura do país muito superior aos homens brancos, toda e qualquer revoluçnao que aqueles presentirem nestes seria motivo para que eles mesmos se rebelassem". O receio do filho do capitão-mor tinha as suas razões. Os escravos mineiros àquela altura haviam fundado diversos quilombos em quase toda a área da capitania. Tanto isto é verdade que o receio do filho do capitão-mor era endossado por Alvarenga Peixoto, que nnao desejava radicalizar a Inconfidência ao nível da participação do escravo como agente político dinâmico nos seus quadros.

Por outro lado, o sargento Luís Vaz de Toledo propunha que os escravos participassem ativamente da luta junto com os inconfidentes, pois, para ele, "um negro com uma carta de alforria à testa se deixava morrer". Essa participação foi parcial e pouco significativa, pelo fato de que em Sabará, segundo depoimento de Brito Malheiro, "se puseram uns pasquins que diziam que tudo o que fosse homem do Reino havia de morrer e que só ficaria algum velho clérigo e que isto foi posto em nome dos quilombolas". Isto bem demonstra como os quilombolas estavam atentos aos fatos políticos que se desenrolavam na cidade.

Na linha de frente

Se na Inconfidência Mineira não podemos ver a ação prática dos negros (mesmo porque foi um movimento sem prática política), na Inconfidência Baiana (Revolta dos Alfaiates), de 1798, essa participação é bem mais visível e direta. isto porque a Inconfidência Baiana tinha objetivos muito mais radicais, e a proposta de libertação dos escravos estava no primeiro plano das suas cogitações. Os seus dirigentes eram, na sua maioria, negros forros, negros escravos, pardos escravos, pardos forros, artesãos, alfaiates, enfim componentes dos estratos mais oprimidos e/ou discriminados na sociedade colonial da Bahia da época.

Um dos seus líderes, Manual Faustino dos Santos, ao ser perguntado sobre quais seriam os objetivos do levante, não teve dúvidas em afirmar que era para

reduzir o continente do Brasil a um governo de igualdade, entrando nele brancos, pardos e pretos sem distinção de cores, somente de capacidade de governar, saqueando os cofres públicos e reduzindo todos a um só para dele se pagar as tropas e assistir as necessidades do Estado.

A mesma coisa diziam os papéis que foram afixados nas paredes da cidade. Em um desses manuscritos, apreendidos pelas autoridades e que consta nos Autos da Devassa, lê-se:

Ó vós povos [ilegível] sereis livre para gozares dos bens e efeitos da liberdade; ó vós povos que viveis flagelados com o pleno poder do inimigo coroado, esse mesmo rei que vós criastes; esse mesmo rei tirado é quem se firma no trono para vos vexar, para vos roubar e para vos maltratar.

E mais:

Homens, o tempo é chegado para a vossa ressurreição, sim, para ressucitáreis [sic] do abismo da escravidão, para levantareis [sic] a Sagrada bandeira da Liberdade.

A conspiração, no entanto, não conseguia progredir, avançar e ligar-se mais amplamente às camadas mais exploradas, discriminadas ou perseguidas. A partir daí os intelectuais que também conspiravam logo arrefecem o ânimo e dela se retiram. Com isto, a direção do movimento ficou praticamente nas mãos de negros e escravos. Luís Gonzaga das Virgens, o autor dos manifestos colados em lugares públicos, é procurado pela polícia e preso finalmente em 24 de agosto. Os inconfidentes tomam medidas de emergência e procuram resgatá-lo, mas não consegue o seu intento. A Inconfidência Baiaba entra em declínio.

Os seus líderes contavam com a participação dos escravos da periferia de Salvador, além dos batalhões de pardos e pretos, para o êxito do movimento. O conteúdo francamente abolicionista do seu programa atraía particularmente os escravos, famílias de ex-escravos e os explorados e discriminados de um modo geral. Isto irá se refletir no conteúdo dos documentos de um modo geral.

A grande participaçnao dos chamados pardos e escravos negros, depois indiciados, refleto o seu conteúdo popular e antiescravista. Prova disso é a própria lista dos implicados e registrados no Autos da Devassa, da qual destacamos os seguintes: João de Deus Nascimento era pardo; Manuel Faustino dos Santos, pardo livre; Inácio da Silva Pimentel, pardo livre; Luís Gama da França Pires, pardo escravo; José, escravo; Cosme Damião, pardo escravo; Felipe e Luís, escravos; José do Sacramento, pardo alfaiate; José Félix, pardo escravo; Joaquim Machado Pessanha, pardo livre; Luís Leal, pardo escravo; Inácio Pires, Manuel José e João Pires, pardos escravos; José de Freitas Sacoto, pardo livre; José Roberto de Santana, pardo livre; Vicente, escravo; Fortunato da Veiga Sampaio, pardo forro; Domingos Pedro Ribeiro, pardo; o preto Gege Vicente, escravo; Gonçalves Gonçalo de Oliveira, pardo forro; José Francisco de Paulo, pardo livre; Félix Martins dos Santos, pardo; além de brancos e pessoas de outros estratos sociais detidos como sujeitos.

Recolhidos à prisão, ali permaneceram até serem julgados. Em novembro de 1799 terminava o julgamento com as seguintes sentenças: Luís Gonzaga das Virgens foi condenado a morrer na forca e ter os pés e mãos decepados e expostos em praça pública; João de Deus Nascimento, Lucas Dantas, Manuel Faustino dos Santos Lira também foram sentenciados à forca e esquartejamento, devendo ficar os seus corpos expostos em lugares públicos.

Igual sentença foi proferida contra Romão Pinheiro, com a agravante de serem os seus parentes considerados infames. Posteriormente a sua pena seria atenuada para degredo. O escravo Cosme Damião foi banido para a África, e o pardo escravo Luís da França Pires, que conseguira fugir, foi condenado à morte, dando a Justiça o direito de matá-lo a qualquer pessoa que o encontrasse.

Depois do julgamento, moroso e discriminatório, foram os quatro executados na praça da Piedade. Lucas Dantas e Manuel Faustino não aceitaram a extrema-unção que um padre franciscano lhes oferecera.

Foram executados, depois de ter o cortejo saído do Aljube, onde eles se encontravam, para a praça da Piedade, onde foram imolados.

Somente quatro brancos, todos intelectuais, foram presos como implicados no movimento. Eram eles Cipriano Barata, Moniz Barreto (autor do hino da Inconfidência), Aguilar Pantoja e Oliveira Borges. Todos negaram o seu envolvimento nos acontecimentos e apresentaram testemunhas que os inocentaram. Seus advogados, todos de nomeada, conseguiram facilmente que fossem absolvidos.

Essa utopia libertária de negros escrevos e livres, artesãos e pessoas socialmente discriminadas foi o movimento programaticamente mais radical de quantos foram projetados até a Independência.

O negro como massa de manobra

Se na Inconfidência Baiana os negros estavam no centro do processo de ação política e os intelectuais brancos fogem à medida que ela se radicaliza, em outros movimentos de mudança social o negro estará presente como força auxiliar, muitas vezes usado como massa de manobra das camadas sociais privilegiadas.

No particular, Joaquim Nabuco escreve que

Depois veio o período da agitação pela Independência. Nessa formação geral dos espíritos os escravos enxergavam uma perspectiva mais favorável de liberdade. Todos eles desejavam instintivamente a Independência. A sua própria cor os fazia aderir, com todas as forças, ao Brasil como Pátria [...] Daí a conspiração perpétua pela formação de uma pátria que fosse também sua. Esse elemento poderoso de desagregação foi o fator anônimo da Independência. As relações entre os cativos, os libertos e os homens de cor, entre estes e os representantes conhecidos do movimento, foi a cadeia de esperanças e simpatias pela qual o pensamento político dos últimos infiltrou-se até as camadas sociais constituídas pelos primeiros. 2

Essa conspiração perpétua de que nos fala Nabuco com propriedade, o desejo de formação de uma pátria liberta do escravisto, prosseguirá da parte dos negros em todos os momentos. Esse desejo manifestar-se-á em todas as ocasiões em que a sua participação foi solicitada.

Acontece, porém, que as classes senhoriais racistas sempre viram essa participação como um perigo social, procurando, por isto, colocar os negros (escravos ou livres) como simples massa de manobra a fim de satisfazerem os seus objetivos estratégicos.

Esse desejo de construir uma pátria, assinalado por Nabuco, levou o negro a participar das lutas pela Independência. Isto poderá ser visto durante a revolução de 1817, no Recife, e o comportamento posterior da estrutura de poder político que se formou após a sua efêrmera vitória. Depois de terem usado os escravos como combatentes, ao tomarem o poder, os insurgentes vitoriosos, diante do murmúrio dos latifundiários escravistas de que seria decretada a abolição do trabalho escravo, apressam-se em lançar uma proclamação capitulacionista, na qual afirmam:

Patriotas pernambucanos! A suspeita tem-se insinuado nos proprietários rurais: eles crêem que a benéfica tendência da presente liberal revolução tem por fim a emancipação indistinta dos homens de cor escravos. O governo lhes perdoa uma suspeita que o honra. Nutrido em sentimentos generosos não podem acreditar que os homens, por mais ou menos tostados, degenerassem do original tipo de igualdade; mas está igualmente convencido de que a base de toda sociedade regular é a inviolabilidade de qualquer espécie de propriedade. Impelido destas duas forças opostas, deseja uma emancipação que não permita mais lavrar entre eles o cancro da escravidão; mas deseja-a lenta, regular, legal. O governo não engana ninguém; o coração se lhe sangra ao ver longínqua uma época tão interessante, mas não a quer prepóstera. Patriotas: vossas propriedades ainda as mais opugnantes ao ideal de justiça serão sagradas: o Governo porá meios de diminuir o mal, não o fará cessar pela força.

O liberalismo escravista, que marcou como ideologia quase todos os movimentos de mudança social quer no Brasil-Colônia, quer no Império, declarava-se defensor da escravidão, apesar das restrições de ordem filosófica que fazia contra o conteúdo moral da sua existência. Ao defender o direito de propriedade de um ser humano sobre outro, automaticamente excluía a classe escrava do direito à cidadania. Aliás, esta será uma constante do liberalismo escravista: aproveitar-se da disposição dinâmica dos escravos no sentido de mudar o sistema de produção vigente e, posteriormente, descartá-los da composição da nova estrutura de poder, conservando a instituição escravista.

Essa tática da classe senhorial de usar o negro como massa de manobra vem desde as lutas contra os holandeses e continuará posteriormente. Nas lutas pela consolidação da independência o mesmo quadro se repetirá. Parte da escravaria irá lutar, ou sob as ordens dos seus senhores ou por vontade própria ao lado das fileiras independentistas. Mas, a Independência também não o libertou.

Conquista-se a Independência, conserva-se a escravidão

Conforme vimos, logo depois do grito de D. Pedro I articularam-se os mecanismos políticos que irão organizar o novo tipo de Estado. Enquanto isto se verificava, havia necessidade de se organizarem núcleos patrióticos para consolidá-la militarmente. E o negro foi mais uma vez mobilizado. Os escravos, no entanto, não aceitaram passivamente a situação de simples objetos mandados pelos seus senhores, e muitos fugiram para as matas, engrossando o contigente da quilombagem que já existia.

Resumindo, podemos dizer que o elemento negro (escravo ou livre) teve quatro formas fundamentais de comportamento: 1) aproveitou-se da confusão e fugiu para as matas debandando dos seus senhores, ou juntando-se a algum quilombo existente; 2) aderiu ao movimento da Independência para com isto tentar conseguir a sua alforria, como fora prometida; 3) lutou por simples obediência aos seus senhores; e 4) participou ao lado dos portugueses.

Quanto à primeira forma de comportamento, as autoridades não tiveram dúvidas de reprimi-la com violência. A defesa da propriedade escrava, da mesma forma como nos movimentos anteriores, apresentava-se como medida prioritária. O Governo Provisório que se instalara na província procurou acautelar-se contra os prejuízos que essas fugas continuadas representavam aos senhores e contra o perigo que significavam à ordem social, baixando as seguintes normas para serem obedecidas sem reservas:

  1. Que toda e qualquer pessoa que tiver em seu poder algum escravo que por legítimo título lhe não pertença, o entregue ao seu verdadeiro senhor; e, ignorando quem ele seja, vá logo recolher à cadeia mais vizinha, entregando-o ao Juiz respectivo; isto no prazo de quinze dias depois da publicação deste, abaixo das penas estabelecidas contra os receptores dos escravos alheios.

  2. Que todos os Juízes e Capitães-Mores façam a mais exata indagação para descobrirem tais escravos e fazê-los prender. Recolhidos que sejam à cadeia, darão conta pela Secretaria deste Governo, remetendo uma lista circunstanciada, na qual se declarem os nomes, nação e sinais dos sobreditos escravos e a quem pertencem, sendo que eles o contassem; outrossim declarem os vencimentos que tiverem os Capitães-do-Mato ou quem os for prender, os quais se deverão regular pela distância em que forem presos com relação à morada dos referidos Capitães-do-Mato, na conformidade do seu regimento; e o dia em que forem recolhidos à cadeia a fim de saber-se o quanto tem despendido o carcereiro em comedorias, o que tudo se faz público pela folha que chege à notícia dos seus donos.

  3. Que todos os proprietários de Engenhos e Fazendas indaguem se nas suas terras se acolhem alguns destes escravos e os farão prender e remeter à cadeia vizinha; e não os podendo prender, por se recolherem às matas, dêem logo parte aos Capitães-Mores e Juízes, declarando o lugar onde lhes constem que existem. 3

Atravéis de medidas como estas a classe senhorial resguardava-se das possíveis atitudes de rebeldia dos escravos, mesmo usando-os como massa de manobra militar contra as tropas portuguesas. O próprio general Labatut usou dessa tática, fuzilando escravos que ficaram ao lado dos colonizadores lusos e criando um batalhão de negros para combater ao lado de suas tropas.

Toda essa participação do negro nos movimentos sociais e políticos resultou, sempre, em uma experiência frustrada.

Uma república de homens livres no Brasil escravista

Uma exceção, no entanto, deve ser feita: a sua participação na República de Piratini. Em pleno regime escravista, durante o Segundo Império, os escravos viveram em liberdade durante os anos de 1835 a 1845, num momento em que, no resto do Brasil, eles lutavam de armas nas mnaos dos diversos movimentos da quilombagem que marcaram aquele período.

Referimo-nos à sua perticipação na Revolução Farroupilha e na proclamação da República de Piratini que ocupou o espaço geográfico dos atuais Estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. A participaçnao dos escravos nessa república separatista proclamada por Bento Gonçalves tinha, ao contrário da sua participaçnao em outros movimentos, a sua razão de ser.

Sendo o Movimento Farroupilha deflagrado por estanceiros ou grupos e camadas a eles ligados social ou economicamente e não sendo substantivo o trabalho escravo nesse tipo de atividade, os seus promotores não encontraram dificuldades em alforriar os seus escravos, que passaram a ser homens livres, tendo a sua maioria se engajado nas tropas dos farrapos, para combater pelos ideais republicanos. Escravo que chegasse ao território farroupilha era considerado homem livre.

As três províncias insurgentes não receberam um contingente demográfico africano considerável em relação a outras, como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco, Maranhã e Bahia, embora o seu coeficiente tenha sido bem maior do que se supõe. O tipo de economia pastoril e extrativa prescindia do escravo ou o usava em quantidade bem inferior à dos engenhos de açúcar do Nordeste ou na mineração. Por outro lado, os trabalhos agrícolas, especialmente da erva-mate, também não eram de natureza a exigir uma concentração de braços escravos como a que a economia dos engenhos ou a da mineração impunham. Além disso, devemos salientar que, nas regiões fronteiriças, havia sempre o perigo de o escravo fugir para ourtos países. Daí não terem as camadas dirigentes da República interesse em manter a escravidão. O Rio Grande do Sul tinha, na época, 100000 negros na sua população de 360000 habitantes.

O escravo negro participou nesse episódio como aliado livre, criando várias zonas de perigo militar para o adversário em todas as áreas de combate. Ele não foi, também, um aliado de última hora. Desde a tomada de Porto Alegre pelos farrapos, quando se inicia a revolta, o escravo negro estará presente, resgatando a sua liberdade com essas lutas. Todos os depoimentos da época afirmam que o negro foi um aliado dos mais importantes da República de Piratini. Dante de Laytano:

No avanço sobre a capital, em 20 de junho e em 30 de junho [de 1835], e no cerco de Pelotas, em 1836, que amrcam os passos iniciais e importantes das guerras de dez anos, os escravos negros tiveram um lugar de primeiro plano.

Os negros, escravos ou libertos, iam, daí por diante, tomar as posições de saliente coragem e entusiasmo de lutar.

Foram eles elementos de colaboração, entraram com os primeiros insurretos, estiveram ao par dos segredos e das senhas revolucionárias e tomaram parte na primeira avalanche que se jogou contra o Império. 4

O major João Manuel de Lima assumiu o comando da 1a. Legião de escravos que entrou na cidade de Pelotas. Os escravos tinham razões de sobra para combater ao lado dos farrapos. O sentido antiescravista dos seus líderes justificava plenamente esse engajamento. Bento Gonçalves e Domingos de Almeida, ministros da Justiça e do Interior da jovem e efêmera República respectivamente, ao saberem que as tropas imperiais, ao prenderem negros soldados, assinaram, em 11 de maio de 1839, documento no qual decidiam:

O Presidente da República, para reivindicar direitos inalienáveis da humanidade, não consentindo que o livre rio-grandense de qualquer cor que os acidentes da Natureza os tenham distinguido sofra impune e não-vingado o indigno, bárbaro, aviltante e afrontoso tratamento que lhe prepara o infame Governo Imperial, em represália ao que lhe é provocado, Decreta:

Artigo único: desde o momento em que houver sido açoitado um homem de cor a soldo da República pelas autoridades do Brasil, o General Comandante-Chefe do Exército, ou Comandante das diversas divisões do mesmo, tirará a sorte aos oficiais de qualquer grau que sejam tropas Imperiais nossos prisioneiros, e fará passar pelas armas aquele que a mesma sorte designar.

Essa medida extrema de Bento Gonçalves bem demonstra o nível de valorização dos negros combatentes por parte dos farroupilhas. Isto porque, como é evidente, o negro demonstrava um ótimo desempenho como solvado. Porém, não foi apenas como lanceiro, soldado de infantaria ou nas cargas de cavalaria que ele se destacou pela importância do seu papel, mas na Marinha também. Lanchões armados, tripulados por ex-escravos, faziam parte da pequena frota farroupilha. Em várias oportunidades tiveram de provar a sua bravura, conforme o testemunho de outros participantes dessas refregas. Rafael e Procópio, negros, participaram juntamente com Garibaldi, que aderiu aos farroupilhas, dos combates que suas tropas travaram em Camaquã contra Frederico Moringue, das tropas imperiais. Muita da resistência que foi oferecida àquele chefe legalista deve-se à disposição dos negros que estavam ao seu lado.

O próprio Garibaldi, que tão ativamente participou ao lado das tropas de Bento Gonçalves criando, mesmo, a auréola de Herói de Dois Mundos, nas suas memórias refere-se elogiosamente a esses combatentes.

Esse intermezzo de liberdade durou pouco, porém. A República de Piratini foi derrotada pelo Duque de Caxias, que comandava as tropas do império escravista. Mesmo assim, os farroupilhas, no seu tratato de rendição, estabeleceram uma cláusula na qual se estipulava que deveiam "ser livres, e como tais reconhecidos, os cativos que serviram na revolução".

Logo depois, porém, o escravismo voltou a se instalar em toda a sua plenitude no território, que foi, durante dez anos, uma república sem escravos.

1

ALDENGURGK, Johann Gregor. Relação da conquista e perda da cidade de Salvador pelos holandeses em 1624-1625. São Paulo, Brasiliensia Documenta, 1961, p. 177.

2

NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. São Paulo e Rio de Janeiro, nacional e Civilização Brasileira, 1938, p. 122.

3

Apud AMARAL, Brás do. História da Independência na Bahia. salvador, Progresso, 1957, p. 293.

4

LAYTANO, Dante de. História da república rio-grandense. Porto Alegre, Globo, 1936, p. 149.

A decadência da escravidão e a crise do sistema

No ano de 1850 é extindo o tráfico de escravos da África para o Brasil. Esse fato marcará profundamente os destinos da escravidão. Com tal medida restritiva a população negro-africana deixa de entrar, através dos vários portos de desembarque, como componente demográfico no território brasileiro. Levando-se em conta, como já vimos, que a média de vida útil do escravo era de 7 a 10 anos, podemos ver facilmente que a população negra tende a decrescer, pois ela não podia recompor-se e alcançar índices de natalidade capazes de repor o número de escravos que morriam.

Inicia-se, assim, a crise do sistema escravista. A essa causa demográfica juntavam-se outras igualmente importantes. O açúcar, mercadoria de exportação que dera prosperidade à área de trabalho escravo no Nordeste, entrara em decadência no mercado mundial. O mesmo fenômeno de decadência também se manifestara em Minas Gerais e Goiás, pois a avidez da metrópole exaurira em menos de dois séculos quase toda a riqueza do subsolo daquela área. Grande parte da população escrava, por seu turno, continuava a sua trajetória de rebeldia. A fuga permanente do escravo que exigia a manutenção de um aparelho repressivo e de captura permanente também onerava o custo de produção.

Por outro lado, na segunda metade do século XIX uma nova cultura aparece no Sudeste com um dinamismo que surpreende e, ao mesmo tempo, exige uma quantidade cada vez maior de mão-de-obra: o café. Não havendo a possibilidade de importação de africanos, os fazendeiros do café Rio de Janeiro, São Paulo e Minas no início do surto usam o recurso de importar o negro escravo de outras províncias que já se encontravam decadentes, como Pernambuco, Bahia e Ceará.

Essa necessidade de importação interprovincial desarticula novamente a população negra, que é deslocada para as novas áreas prósperas, muitas vezes vendo fragmentada a sua família, pois os seus membros podiam ser vendidos para senhores diferentes.

Esse novo deslocamento da população negra escrava estava, por isto, subordinado aos senhores. Escreve neste sentido Emília Viotti da Costa:

Foi o café o grande responsável pelo aumento do número de escravos e pela modificação das estatísticas. São Paulo passará com o Rio e Minas a deter, em 1887, 50% da população escrava do país. Os lavradores que avançavam pelo interior do vale fluminense e se fixavam nas terras paulistas e mineiras não encontravam outra solução para o problema da mão-de-obra. 1

Durante o sistema do Brasil-Colônia, a escravidão se estruturava em toda a sua plenitude. De um lado, a população escrava aumentava a baixo preço através do tráfico, e, de outro, a produção para exportação praticamente não tinha concorrência no mercado mundial. Havia uma concordância de fatores positivos. O negro não apenas trabalhava, mas era mercadoria que podia ser vendida a qualquer momento, muitas vezes com lucro compensador. A reposição da peça que morria era feita quase sem ônus para o senhor em face do seu baixo preço.

Agora, não. O senhor na economia cafeeira tinha de enfrentar um novo universo. O escravo já não era mais aquela mercadoria barata e facilmente substituível, mas, pelo contrário, devia ser protegida, pois a sua inutilização iria onerar o custo da produção. O imigrante, cuja presença se fará sentir, não tinha aptidão para o tipo de trabalho como ele era praticado nas fazendas cafeeiras. Ademais, era muito mais caro que o escravo, mesmo este tendo sido revalorizado como mercadoria, apéos a abolição do tráfico. Desse conjunto de circunstâncias surge uma realidade nova: de um lado aumenta a demanda internacional pelo café e, de outro, aumenta o preço do escravo internamente. Isto levará a que alguns segmentos, mercantis ou com capitais paralisados com a extinção do tráfico, se organizem no sentido de suprir a procura de braços. Mas, como esses segmentos visavam a uma taxa de lucro elevada e altamente compensadora, não irão recrutar o trabalhador nacional não-branco e em particular o trabalhador negro. Essa mão-de-obra é descartada já antes da Abolição, e se cria o mito da superioridade do trabalho branco importado que traria, consigo, os elementos culturais capazes de civilizar o Brasil. Mas, enquanto essa campanha imigrantista não conseguia estruturar-se definitivamente, o preço do negro escravo aumentava no mercado.

De perseguido a protegido

Em conseqüência, o capital investido no negro devia ser protegido, e surgem as primeiras leis protetoras. Se antes, conforme já vimos, as leis contra o escravo eram quase toads despóticas e terroristas, nessa fase da escravidão ele passa a ser protegido. A Lei do Sexagenários, a do Ventre-Livre, a extinção da pena de açoite, a proibição de se venderem para senhores membros da mesma família escrava e outras são mecanismos que protegem mais a propriedade do senhor do que a pessoa do negro escravo. A Lei do Sexagenários, por exemplo, serviu para descartar a população escrava não produtiva, que apenas existia como sucata e dava despesas aos seus senhores. A Lei do Ventre-Livre condicionava praticamente o ingênuo a viver até os vinte anos numa escravidão disfarçada trabalhando para o senhor.

A crise do sistema escravista entrava em sua última fase. Do ponto de vista estritamente econômico, capitais de nações européias mais desenvolvidas no sistema capitalista investiam nos ramos fundamentais, como transportes, iluminação, portos e bancos, criando uma contradição que irá aguçando-se progressivamente entre o trabalho livre e o escravo. Tudo isso irá culminar com a Guerra do Paraguai, na qual os negros serão envolvidos na sua grande maioria compulsoriamente, nela morrendo cerca de 90000. Aqueles que fugiram ao cativeiro, apresentando-se como voluntários, acreditando na promessa imperial de libertá-los após o conflito, foram muitos deles reescravizados.

Essa grande sucção de mão-de-obra negra, provocada pela Guerra do Paraguai, abriu espaços ainda maiores para que o imigrante fosse aproveitado como trabalhador. Essa tática de enviar negros à guerra serviu, de um lado, para branquear a população brasileira e, de outro, para justificar a poplítica imigrantista que era patrocinada por parcelas significativas do capitalismo nativo e pelo governo de D. Pedro II.

Nessa fase poderemos ver duas tendências demográficas da população negra, escrava ou livre: a) decréscimo numério em conseqüência da guerra e do envelhecimento e falecimento de grande parte dos seus membros; b) concentração dessa população nas províncias de Minas, Rio de Janeiro e São Paulo.

Nas demais províncias vemos uma economia estagnada, com uma população negra incorporando-se aos tipos regionais de exploração camponesa, pois os senhores não tinham excedentes monetários para investir na dinamização dessa economia decadente. O negro é, assim, naquelas áreas, incorporado, conforme já analisamos antes, a uma economia de miséria. 2

Decomposição do sistema e comportamento senhorial

Dessa forma, na passagem da crise para decomposição do sistema escravista, temos duas vertentes econômicas e de comprotamento dos senhores. A primeira era a dos que habitavam a região decadente e estagnada do Nordeste e Norte, com uma economia sem possibilidades de recuperar-se nem mesmo a longo prazo, uma população escrava que mais onerava que produzia e uma população de negros livres participantes de uma economia camponesa de escassa rentabilidade, com culturas alternativas ou de subsistência. A segunda era a tendência dos fazendeiros de café de parte de Minas, do Vale do Paraíba e outras áreas de São Paulo e Rio de Janeiro, que entravam agressivamente no mercado mundial com a defasagem de produzir essa mercadoria ainda através do trabalho escravo, o que era um anacronismo.

Tudo isso levava a que se pensasse em outro tipo de organização do trabalho.

No Brasil, ao se pensar em novo tipo de organização do trabalho, por mecanismos ideológicos elitistas, pensava-se, também, em outro tipo de trabalhador. E aqui se cruzam os preconceitos racistas das nossas elites com os interesses mercantis daqueles segmentos da burguesia nativa que se organizaram e investiram para explorar a empresa imigrantista.

Essas razões que configuram a crise estrutural do escravismo fizeram com que, a partir de 1871, o movimento abolicionista se organizasse em pequenos grupos de boêmios e intelectuais influenciados por idéias liberais mais radicais. Nabuco, registrando o início desse movimento, escreve que

Não há muito se fala no Brasil em abolicionismo e Partido Abolicionista. A idéia de suprimir a escravidão, libertando os escravos existentes, sucedeu à ideia de suprimir a escravidão, entregando-lhe o milhão e meio de homens que ela se achava de posse em 1871 e deixando-a acabar com eles. Foi na legislatura de 1879/80 que, pela primeira vez, se viu dentro e fora do Parlamento um grupo de homens fazer da emancipação dos escravos, não da limitação do cativeiro às gerações atuais, a sua bandeira política, a condição preliminar dos partidos.

A história das posições que a Escravidão encontrara até então pode ser resumida em poucas palavras. No período anterior à Independência e nos primeiros anos subseqüêntes, houve, na geração trabalhada pelas idéias liberais do começo do século, um certo desassossego de consciência pela necessidade em que ela se viu de realizar a emancipação nacional, deixando grande parte da população em cativeiro pessoal. Os acontecimentos políticos, porém, absorveram a atenção do povo, e, com a revolução de 7 de abril de 1831, começou o período de excitação que durou até a Maioridade. Foi somente no Segundo Reinado que o progresso dos costumes públicos tornou possível a primeira resistência séria à Escravidão. 3

Somente quando o escravismo entra em crise estrutural, crise que tem início com a extinção do tráfico, começa-se a pensar de forma difusa, esporádica e utópica na idéia da emancipação dos escravos. Mas, somente depois de 1880, segundo o próprio Nabuco, é que o abolicionismo aparece como um movimento que apresenta uma proposta política. Como vemos, a dinâmica radical anterior a esse movimento contra a escravidão partiu dos próprios escravos, através da quilombagem.

Nessas circunstâncias o povo, especialmente os grupos residentes nas áreas urbanas, acoitava os escravos fugidos. As leis contra esses atos não eram mais aplicadas. Em 1883, funda-se a Confederação Abolicionista, que atuará nacionalmente. O Clube Militar, em 1887, através do seu presidente, mostra as desvantagens de o Exército caçar negros fugidos, como queria o governo imperial. Diz a carta enviada ao então ministro da Guerra Manuel Antônio da Fonseca da Costa:

Il.mo Ex.mo Marechal do Exército Visconde da Gávea. Não é tanto pela voz da caridade, da humanidade, da justiça, e da razão que o Clube Militar, de que sou órgão, dá esse passo. Não é tanto pela redenção dos cativos que, hoje, opor barreiras à forte corrente abolicionista é imprudência, hoje que se faz ouvir a voz da Igreja de Cristo, hoje que os supremos ministros de Deus-homem, de Deus da caridade, afinal, falam o que há muito deviam clamar.

Não é tanto pela injustiça clamorosa do morticínio decretado a homens que buscam a liberdade sem combates nem represálias; é pelo papel menos decoroso, menos digno que se quer dar ao Exército.

O Exército é para a guerra leal, na defesa do Trono e da Pátria, para outros afazeres que necessitam força armada há a polícia, que alistou-se para esse fim.

A V. Ex.a, pois, venho pedir que se digne dar andamento ao requerimento junto que tenho a honra de passar às mãos de V. Ex.a, porquanto o serviço – pegar negros fugidos – pelo Exército, se para uns é fácil e agradável, para outros é repugnante e pode tornar-se improfícuo; neste segundo caso, cuja verdade é o não-cumprimento de ordens, embora salvas as aparências, há prejuízos, perda da força moral e inconveniência à disciplina, conquanto seja a falta cometida de difícil, senão impossível prova.

O serviço – pegar negros fugidos – é congênere, em tudo e por tudo, ao antigo – captura de negros novos – em que também não havia cumprimento de ordens. sendo a diferença única essa de que então as ordens eram dadas no sentido de se falhar a diligência, e o resultado quase sempre era o contrário, fazia-se a captura; hoje quer-se a captura, e o resultado será a falha.

Dir-se-á que nada temos com isso; é um engano, porque somos soldados e vemos as mesmas inconveniências disciplinares e perseguições como as que se davam antigamente, quer em relação ao não-cumprimento de ordem, quer sobre a ação contra o oficial que fazia a captura desejada.

V. Ex.a tenha paciência e aceite o requerimento, onde aproveito a ocasião para patentear a adesão e fidelidade ao nosso bom Imperador e à sua dinastia, que somente conosco, com o Exército e Armada, pode e deve contar. De V. Ex.a at. amigo e camarada muito grato – Marechal-de-Campo Manuel Deodoro da Fonseca – Rio de Janeiro, 25 de outubro de 1887.

Como vemos, foi o Clube Militar, uma sociedade civil de militares, quem recusou o papel de capitão-do-mato, e não o Exército como instituição.

Por outro lado, somando-se a esses fatores, na última fase da escravidão, a simples fuga passiva dos escravos já era suficiente para desestabilizar o sistema ou condicionar psicologicamente os membros da classe senhorial e outras camadas sociais em desenvolvimento. Na fase do que chamamos escravismo tardio, a insegurança na compra de escravos e a pouca rentabilidade do seu trabalho eram suficientes para que os investidores transferissem seus capitais para a especulação. Nesse sentido, escreve Vicente Licínio Cardoso:

Em 1884, em pleno Parlamento, uma confissão gravíssima de Andrade Figueira, traduzindo o abalo das fugas dos escravos em grandes massas, bem diria o perigo do momento: "O povo já perdeu a confiança na única indústria que alimenta a nossa riqueza, a indústria agrícola. Os capitais só procuram emprego em apólices, não enxergando segurança em outra parte". 4

O papel da quilombagem, mesmo na fase do capitalismo tardio, quadno era apenas passiva, conseguia influir na aplicação de capitais, pois a síndrome do medo inibia esses especuladores que passam a procurar outros ramos mais favoráveis e seguros de investimento.

Além dessas causas estruturais, fatores externos levam o sistema escravista a um impasse cuja solução foi a Abolição sem reformas. O dilema se apresentava diante dos fazendeiros: ou aceitavam a Abolição compromissada como o Trono queria, conservando-lhes os privilégios, ou correriam o risco de ver a Abolição feita pelos próprios escravos, através de medidas radicais, como a divisão das terras senhoriais. A concordata foi feita. O problema da mão-de-obra já estava praticamente resolvido com a importação de milhares de imigrantes. O trabalhador nacional descendente de africanos seria marginalizado e estigmatizado. O idela de branqueamento das elites seria satisfeito, e as estruturas arcaicas de propriedade continuariam intocadas.

O negro, ex-escravo, é atirado como sobra na periferia do sistema de trabalho livre, o racismo é remanipulado criando mecanismos de barragem para o negro em todos os níveis da sociedade, e o modelo de capitalismo dependente é implantado, perdurando até hoje.

1

VIOTTI DA COSTA, Emília. Da senzala à Colônia. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966, p. 26.

2

Confrontar: MOURA, Clóvis. O negro; de bom escravo a mau cidadão? Rio de Janeiro, Conquista, 1977, passim.

3

NABUCO, Joaquim. Op. cit., p. 12.

4

CARDOSO, Vicente Licínio. À margem da história do Brasil. 2. ed. São Paulo, Nacional, 1938, p. 155-6.

Em busca da cidadania

Ser negro é os costumes dizerem que vais ter de conquistar os direitos que a constituição te garantia já. – TURNER BROWN JR.

As festividades iniciais da Abolição

O dia 14 de maio foi festivo para grande parte dos escravos que saíram das senzalas. Durante a euforia predominante, supuseram que haviam conquistado a liberdade e que os caminhos da cidadania estavam abertos para eles. A princesa Isabel apssou a ser, para a sua maioria, o símbolo da redenção do cativeiro. Os ex-escravos tinham como certa a sua equiparação aos demais cidadãos do Império. Houve uma parcela de negros que criou o isabelismo, pensamento que reinvindicava a defesa da princesa regente por acreditarem que ela fosse a personalidade que os redimira da escravidão num ato de bondade pessoal.

José do Patrocínio foi o mais fervoroso adept do isabelismo, e procurou aliciar libertos para defender a monarquia ameaçada pela onda republicana que crescera após a Abolição. Não satisfeito em beijar os pés da Redentora, José do Patrocínio inicia a arregimentação de ex-excravos, capoeiras e marginais de um modo geral, para fundar a Guarda Negra. Esse ajuntamento tinha como finalidade impedir a propaganda republicana, inclusive com a tarefa de dissolver comícios pela violência. Essa posição dos elemntos por José do Patrocínio deu muito trabalho às autoridades e impediu, em muitos casos, que os adversários da monarquia se manifestassem. Os seus membros conseguiram dissolver muitos comícios republicanos através da violência.

A áspera estrada do negro pela conquista da cidadania começava. Julgando-se cidadão, pensando poder invocar os seus direitos, o egresso das senzalas teve uma grande decepção. A sua cidadania nada mais era do que um símbolo habilmente elaborado pelas classes dominantes para que os mecanismos repressivos tivessem possibilidades de elaborar uma estratégia capaz de colocá-lo emparedado num imobilismo social que dura até os nossos dias.

Por tudo isto, a primeira tentativa de manifestar-se contestatoriamente foi de forma equivocada: Segundo registra a crônica da época, houve mesmo mortes em comícios republicanos pelas quais a Guarda Negra foi responsabilizada. Osvaldo Orico, biógrafo de José do Patrocínio, assim descreve a situação:

Incompreensível por um lado, mas explicável por outro, essa famigerada Guarda Negra tivera um inspirador. Não fora outro senão José do Patrocínio. O fanatismo abrira-lhe na alma a ilusão desse recurso com que imaginava cercar de garantias o prestígio da Redentora de sua raça. Foi a gratidão que o moveu a provocar e a sugerir um movimento de solidariedade dos libertos para com a padroeira inesquecível. E, ao toque de reunir, acorreram de todo lado os antigos sentenciados do cativeiro, ansiosos de oferecer com a força material do peito aberto a flor do seu reconhecimento heróico. Os acontecimentos registrados na capital e no interior, durante a fase em que se fez sentir a influência da Guarda Negra e se apelou para a sua incontida violência, mostraram como fora infeliz a ideia de arregimentar no antigo holocausto das senzalas a força que deveria guardar o Trono. Inaugurou-se uma época de terror que deu à nação enormes prejuízos em dinheiro e em vidas. Onde quer que brilhasse a centelha da luz republicana, surgir aí o conflito das raças, desencadeado pela fúria dos libertos em louvor à rainha. E amiudaram-se os atentado e morticínios. Na rua do Passeio; em frente à Secretaria de Justiça; em dias de março de 89, durante a agitação popular que a frebre amarela e a falta de água provocaram, a Guarda Negra deixou indícios de sua lamentável influência. 1

Nas cidades de Campos e Lage do Murié, ainda segundo Osvaldo Orico, a Guarda Negra agiu com violência contra os republicanos:

Na primeira localidade em uma reunião republicana que se processava pacificamente, massa enorme de policiais e liertos armados invadiu o edifício em que se realizava um banquete democrático, alarmou as senhoras, desrespeitou com ameaças a intervenção amistosa do pároco, que suplicava das janelas do templo ordem e clemência, disparou tiros, arremessou garrafas, espancou e feriu, tudo isto para levantar entre acompanhamentos bélicos vivas e saudações à rainha. Na segunda, a polícia, após uma série de distúrbios, prendeu no tronco um honrado cidadão por suspeita de ideiais republicanos. 2

A Guarda Negra era um movimento contraditório e confuso. Apoiava a monarquia porque os escravos conseguiram libertar-se do cativeiro através da magnanimidade da princesa Isabel. Via a Abolição como um ato de munificiência social praticado pela regente, sem analisar as estratégias ocultas nessa medida e as conseqüências negativas que a Abolição traria, feita da forma inconclusa como o foi.

Por outro lado, deixaram de pressionar os republicanos, especialmente os mais democratas, como Silva Jardim, no sentido de radicalizar o seu programa, exigindo reformas sociais e econômicas estruturais, como a distribuição de terra aos ex-escravos. Foi, portanto, um movimento conjuntural e reacionário, e o próprio José do Patrocínio, ao ver proclamada a República, foi um dos primeiros a aderir ao novo regime. Com isto, a Guarda Negra se desarticulou completamente logo depois da proclamação da República, vindo a desaparecer sem maiores conseqüências.

Nesse período de transição, os negros recém-saídos da escravidão passaram a se organizar de várias formas alternativas, especialmente em grupos de lazer, culturais ou esportivos. Por outro lado, levando-se em consideração a forma como a Abolição foi feita, descartando-os da participação naquelas reformas estruturais que as mudanças do momento estavam a exigir, as reminiscências do sistema escravista e da Redentora continuaram existindo como ideologia de apoio psicológico em diversos grupos negros de ex-escravos. Isto retardou ainda mais o processo, pois a Guarda Negra tinha uma ideologia de retrocesso, de volta ao passado e ao mesmo tempo utópica (monarquia sem escravidão), quando devia exigir medidas de avanço sociais radicais.

A revolta da chibata

Uma das instituições na qual o comportamento escravista dos seus superiores mais se evidenciava era a Marinha de Guerra do Brasil. O uso do açoite como medida disciplinar continuou sendo aplicado nos marinheiros, como no tempo em que existia o pelourinho. Todos os marinheiros, na sua esmagadora maioria negros, continuavam a ser açoitados às vistas dos companheiros, por determinação da oficialidade branca.

Os demais marujos eram obrigados a assistir à cena infamante no convés das belonaves. Com isto, criaram-se condições de revolta no seio da marujada. Os seus membros não aceitavam mais passivamente esse tipo de castigo. Chefiados por Francisco Dias, João Cândido e outros tripulantes do Minas Gerais, navio capitânia da esquadra, organizaram-se contra a situação humilhante de que eram vítimas. Nos outros navios a marujada também se organizava: o cabo Gregório conspirava no São Paulo, e no Deodoro havia o cabo André Avelino.

Dia 22 de novembro de 1910. Final praticamente de mais um ano do início do governo marechal Hermes da Fonseca. A informação chega até o presidente: a esquadra se sublevara. O movimento que vinha sendo articulado pelos marinheiros foi antecipado em face da indignação dos marujos contra o espancamento de mais um companheiro. O marinheiro negro Marcelino recebeu 250 chibatadas aos olhos de toda a tripulação, formada no convés do Minas Gerais. Desmaiou, mas os açoites continuaram.

Os marinheiros, tendo João Cândido como líder, resolveram sublevar-se imediatamente. Num golpe rápido, apoderaram-se dos principais navios da Marinha de Guerra brasileira e se aproximaram do Rio de Janeiro. Em seguida mandaram mensagem ao presidente da República e ao ministro da Marinha exigindo a extinção do uso da chibata.

O governo ficou estarrecido. Supôs tratar-se de um golpe político das forças inimigas. O pânico apoderou-se de grande parte da população da cidade. Muitas pessoas fugiram. Somente em um dia correram 12 composições especiais para Petrópolis, levando 3000 pessoas. Todos os navios fiéis ao governo ainda tentaram duelar com os revoltosos, mas foram logo silenciados. Com isto os marujos criaram um impasse institucional. De um lado a Marinha, que queria a punição dos amotinados, em conseqüência da morte de alguns oficiais da armada. Do outro lado, o governo e os políticos, que sabiam não ter forças para satisfazer essa exigência. Mesmo porque os marinheiros estavam militarmente muito mais fortes do que a Marinha de Guerra, pois comandavam, praticamente, a armada e tinham os canhões de suas belonaves apontados para a capital da República.

Depois de muitas reuniões políticas, nas quais entrou, entre outros, Rui Barbosa, que condenou os "abusos com os quais, na gloriosa época do abolicionismo, levantamos a indignação dos nossos compatriotas", foi aprovado um projeto de anistia para os amotinados. Com isto, os marinheiros desceram as bandeiras vermelhas dos mastros dos seus navios. Desaparecia, assim, o uso da chibata como norma de punição disciplinar na Marinha de Guerra do Brasil.

As forças militares, não-conformadas com a solução política encontrada para a crise, apertam o cerco contra os marinheiros. João Cândido, sentindo o perigo, ainda tenta reunir o Comitê Geral da Revolução, inutilmente. Procuram Rui Barbosa e Severino Vieira, que defenderam a anistia em favor deles, mas sequer são recebidos por esses dois políticos. Unem-se, agora, civis e militares para desafrontar os "bríos da Marinha de Guerra" por eles atingidos. Finalmente vem um decreto pelo qual qualquer marinheiro podia ser sumariamente demitido. A anistia fora uma farsa para desarmá-los.

São acusados de conspiradores, espalham boates de que haveria uma outra sublevação. Finalmente, afirmam que a guarnição da ilha das Cobras havia se sublevado. Pretexto para que a repressão se desencadeasse violentamente sobre os marinheiros negros. O presidente Hermes da Fonseca necessitava de um pretexto para decretar o estado de sítio, a fim de sufocar os movimentos democráticos que se organizavam. As oligarquias regionais tinham interesse em um governo forte. Os poucos sublevados daquela ilha propõem rendição incondicional, o que não é aceito. Segue-se uma verdadeira chacina. A ilha é bombardeada até ser arrasada. Estava restaurada a honra da Marinha.

João Cândido e os seus companheiros de revolta são presos incomunicáveis, e o governo e a Marinha resolvem exterminar fisicamente os marinheiros. Embarca-os no navio Satélite rumo ao Amazonas.

Os 66 marujos que se encontravam em uma masmorra do Quartel do Exército e mais 31, que se encontravam no Quartel do 1o. Regimento de Infantaria, são embarcados junto com assassinos, ladrões e marginais para serem descarregados nas selvas amazônicas. Os marinheiros, porém, tinham destino diferente dos demais embarcados. Ao lado dos muitos nomes da lista entregue ao comandante do navio, havia uma cruz vermelha, feita a tinta, o que significava a sua sentença de morte. Esses marinheiros foram sendo parceladamente assassinados: fuzilados sumariamente e jogados ao mar.

João Cândido, que não embarca no Satélite, juntamente com alguns companheiros foram recolhidos a uma masmorra na ilha das Cobras, onde viviam como animais.

Dos 18 recolhidos ali, 16 morreram. Uns fuzilados sem julgamento, outros em conseqüência das péssimas condições em que viviam enclausurados. João Cândido enlouqueceu, sendo internado no Hospital dos Alienados. Tuberculoso e na miséria, consegue, contudo, restabelecer-se física e psicologicamente. Perseguido constantemente, morre como vendedor no Entreposto de Peixes da cidade do Rio de Janeiro, sem patente, sem aposentadoria e até sem nome, este herói que um dia foi chamado, com médito, de Almirante Negro.

Uma voz independente para o negro

A revolta dos marinheiros de João Cândido termina, como vimos, em 1911. Quatro anos depois tem início, em São Paulo, uma relevante manifestação de identidade étnica, das mais importantes para conhecermos a trajetória do negro brasileiro na luta pela sua cidadania. Referimo-nos à chamada imprensa negra paulista, cujo primeiro jornal intitula-se O Menelick e começa a circular em 1915. Fenômeno dos mais significativos para se analisar o comportamento e a ideologia desse segmento negro urbano, os jornais editados por negros paulistas sucedem-se até 1963, quando é fechado o Correio d'Ébano.

Os negros paulistas, sentindo a necessidade de um movimento de identidade étnica, e enfrentando as barreiras de uma imprensa branca (Grande Imprensa) impermeável aos anseios e reivindicações da comunidade, recorreram à solução mais viável, que era fundar uma imprensa alternativa, na qual os seus desejos, as denúncias contra o racismo, bem como a sua vida associativa, cultural e social se refletissem.

Conforme dissemos, o primeiro desses órgãos foi O Menelick, que conseguiu o grande prestígio na comunidade negra, difundindo aquilo que os seus redatores achavam mais interessante para a vida social e cultural dos negros. Após o primeiro, outros se sucederam na seguinte ordem: A rua e O Xauter, 1916; O Alfinete, 1918. O Bandeirante, 1919; A Liberdade, 1919; A Sentinela, 1920; O Kosmos, 1922; O Getulino, 1923; O Clarim da Alvorada e Elite, 1924; Auriverde, O Patrocício e O Progresso, 1928; Chibata, 1932; A Evolução e A Voz da Raça, 1933; O Clarim, O Estímulo, A Raça e Tribuna Negra, 1935; A Alvorada, 1936; Senzala, 1946; Mundo Novo, 1950; O Novo Horizonte, 1954; Notícias de Ébano, 1957; O Mutirão, 1958; Hífen e Niger, 1960; Nosso Jornal, 1961; e Correio d'Ébano, 1963.

Esse conjunto de periódicos que se sucedem durante quase cinqüênta anos influirá significativamente na formação de uma ideologia étnica do negro paulista e irá influir, de certa maneira, no seu comportamento. Concentrando o seu noticiário nos acontecimentos da comunidade, divulgando a produção dos seus intelectuais nas páginas dessas publicações, aconselhando, orientando e criando, mesmo, um código de moral puritana para ser obedecido pelos negros, essa imprensa "feita por negros para negros" marcou profundamente o pensamento do negro paulista.

Os seus sobreviventes, como José Correira Leite, Francisco Lucrécio e Aristides barbosa ainda rememoram com nostalgia esse período. Esses jornais, mantidos pelos próprios grupos que os editavam e alguns membros da comunidade que se cotizavam para ajudá-los, constituíram um fato único no Brasil. A obstinação desses grupos negros em manterem um espaço ideológico e informativo independente, bem como a sua consciência étnica, determinou a sua continuidade, embora intermitente. Por outro lado, esses jornais também serviram de veículo organizacional dos negros. As discussões que se travam nas suas páginas, a colocação permanente de problemas específicos da comunidade, as denúncias contra o racismo e a violência através de fatos concretos, tudo isso levou a que os negros de São Paulo fundassem o maior movimento político negro do Brasil: a Frente Negra Brasileira.

Esses jornais, conforme já dissemos, não refletiam nas suas páginas os grandes acontecimentos nacionais. Nada sabemos, pela sua leitura, da Coluna Prestes, da revolução de 1930, do movimento de 1932 em São Paulo, da revolta comunista de 1935 e de outros acontecimentos relevantes nesse período. Há, mesmo, uma certa cautela tática, pois neles também não se encontram notícias ou comentários sobre o movimento sindical, as lutas operárias, greves e a participação dos negros nesses eventos. Também não se encontram críticas ao governo. É uma imprensa altamente setorizada nas suas informações e dirigida a um público específico.

Os seus dois jornais mais importantes, O Clarim da Alvorada e A Voz da Raça, tiveram papel saliente e significativo no despertar da consciência étnica do negro paulista. O primeiro municiou a comunidade de dados e informações preciosos para que o negro se auto-identificasse na sua negritude. O segundo foi o órgão da Frente Negra Brasileira, morvimento que marcou profundamente a consciência do negro, não apenas em São Paulo mas também em outros Estados e elevou o nível de tomada da sua identidade étnica.

A Frente Negra Brasileira

No bojo dessa movimentação ideológica da comunidade negra paulistana, através dos seus jornais, surge a idéia da formação da Frente Negra Brasileira. Ela irá constituir-se em um movimento de caráter nacional, com repercurssão internacional. Surgiu da obstinação de negros abnegados, como Francisco Lucrécio, Raul Joviano do Amaral, José Correia Leite (que, depois, dela se afastará por motivos ideológicos) e mais alguns.

Fundada em 16 de setembro de 1931, a sua sede social central localizava-se na rua Liberdade, na capital paulista. Sua estrutura organizacional já era bastante complexa, muito mais do que a quase inexistente dos jornais. Era dirigida por um Grande Conselho, constituído de 20 membros, selecionando-se, dentre eles, o Chefe e o Secretário. Havia, ainda, um conselho Auxiliar, formado pelos Cabos Distritais da Capital.

Criou-se, ainda, uma milícia frente-negrina, organização paramilitar. Os seus compomentes usavam camisas brancas e recebiam rígido tratamento, como se fossem soldados. Segundo um dos seus fundadores – Francisco Lucrécio –, a Frente Negra foi fundada por ele e outros companheiros embaixo de um poste de iluminação. Ainda segundo a mesma testemunha, no início houve muita incompreensão. Diziam que eles estavam fazendo racismo ao contrário. No entanto, com o tempo, os membros da Frente Negra foram adquirindo a confiança não apenas da comunidade, mas de toda a sociedade paulistana. As próprias autoridades a respeitavam. Os seus membros possuíam uma carteira de identidade expedida pela entidade, com retratos de frene e de perfil. Quando as autoridades policiais encontravam um negro com esse documento, respeitavam-no porque sabia que na Frente Negra só entravam pessoas de bem. Ainda segundo depoimento do Francisco Lucrécio, conseguiram acabar com a discriminação racial que existia na então Força Pública de São Paulo. Até aquela data os negros não poiam entrar na corporação. A Frente Negra inscreveu mais de 400 negros, tendo muitos deles feito carreira militar. Por outro lado, havia divergências na comunidade negra em relação à ideologia da Frente, pois muitos não aceitavam a ideologia patrianovista (monarquista) que o seu primeiro presidente, Arlindo Veiga dos Santos, queria impor aos seus membros. Isso iria se refletir na trajetória da entidadde. Uma visão direitista levou muitos dos seus adeptos a posições simpáticas em relação ao integralismo e ao nazismo.

Paradoxalmente, o conceito de raça é manipulado pelos frente-negrinos, que, no seu jornal A Voz da Raça, colocam como seu slogan "Deu, Pátria, Raca e Família", que depois foi modificado. Era um slogan decalcado diretamente do "Deus, Pátria e Família", da Ação Integralista. Apesar dessas contradições ideológicas, a Frente Negra se desenvolveu rapidamente, criando núcleos em vários Estados do Brasil. Milhares de negros, nas principais áreas do país, aderem ao seu ideário e passam a ser seus membros.

Em face dos êxitos alcançados, a Frente Negra resolveu transformar-se em partido político. Tinha todas as condições exigidas pela Justiça Eleitoral da época, e entrou com pedido nesse sentido em 1936. Sobre o assunto houve discussão entre membros do Tribunal, que chegaram a alegar uma tendência racista na Frente. Finalmente o seu registro foi concedido. Durou pouco, porém. Logo em seguida, 1937, o golpe de Estado deflagrado por Getúlio Vargas implantando o Estado Novo dissolverá todos os partidos, entre eles a Frente Negra Brasileira.

Houve um trauma muito grande na comunidade que a acompanhava ou militava nos seus quadros. Milhares de negros sentiram-se desarvorados politicamente. Um dos seus fundadores, Raul Joviano do Amaral, tenta conservar a entidade, mudando-lhe o nome para União Negra Brasileira. Mas a situação do país não era favorável à vida associativa no Brasil, onde a repressão via atos subversivos em qualquer organização. O jornal A Voz da Raça deixa de circular. A censura é imposta a todos os órgãos de imprensa, e a União, que procurou substituir a Frente, morre melancolicamente, em 1938, exatamente quando se comemoravam 50 anos da Abolição.

Nova articulação

O interregno do Estado Novo inibiu a comunidade negra nacionalmente do ponto de vista organizacional e ideológico. Da mesma forma como as entidades populares e democráticas, sindicatos, associações culturais e outras ficaram sob vigilância permanente dos órgãos de segurança e repressão, as organizações negras recuaram diante da situação. Passaram a se organizar, como simples, clubes de lazer, especialmente dançantes ou esportivos. Somente com a redemocratização, com a vitória dos Aliados e a derrota do nazismo, o negro começa a organizar-se outra vez de forma significativa.

Assim, em 1945 foi fundado, no Rio de Janeiro, o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, o qual tinha como objetivos principais a convocação de uma Assembléia Constituinte; anistia ampla e incondicional para os crimes políticos e conexos; extinção do Tribunal de Segurança Nacional; intensificação do esforço de guerra; liberdade de palavra escrita e falada; liberdade de agremiação; direito de voto aos membros das Forças Armadas sem distinção de postos e direito a sua participação na Assembléia Constituinte; direito de voto nos navios mercantes; reconhecimento do direito de greve; atamento de relações diplomáticas com a URSS; autonomia sindical; direito de sindicalização para o trabalhador das organizações autárquicas; assistência ao trabalhador rural; direito de sindicalização para as empregadas domésticas; liberdade de culto às religiões afro-brasileiras; ensino gratuito; punição às empresas que fazem seleção racial e de cor; aboliçnao das seleções raciais e de cor na diplomacia; aboliçnao da seleção de cor nas escolas militares; participação do negro nos assuntos de colonização e imigração; democratização de todas as organizações negras, aproximando-as das organizações dos brancos; fazer a aproximação das escolas de samba, clubes dançantes, associações esportivas, sociedades beneficientes, organizações religiosas, livrando-as da exploração política e comercial; e criar escolas de alfabetização em todo o território nacional.

O Comitê propunha, ainda, a realização de um Congresso Popular Brasileiro, colaborar com o Congresso de Artistas Plásticos e também, entre oturas coisas, o início de uma campanha para a construção de um monumento a José do Patrocínio.

Nessa mesma conjuntura de redemocratização surge, em 1944, o Teatro Experimental do Negro, no Rio de Janeiro, liderado por Abdias do Nascimento. Ensaiou e apresentou peças, dinamizou a consciência da negritude brasileira e editou um jornal, Quilombo, no qual o pensamento do grupo e a proposta do TEN se apresentavam à opinião pública.

O TEN teve de experimentar grandes dificuldades, quer financeiras, quer ideológicas, suspendendo as suas atividades no palco, mas sempre procurando levantar o problema do negro. Nesse sentido, o TEN organizou o Instituto Nacional do Negro e ao mesmo tempo procurou imprimir às suas atividades um conteúdo de elite cultural negra. Sob sua influência foi convocada a Conferência Nacional do Negro, em 1949. Desse encontro participaram Edison Carneiro, Guerreiro Ramos e outros intelectuais negros e brancos. Depois de mais algumas atividades sociais e artísticas menores, o TEN irá se desarticulando. A situação do TEN marcou significativamente sua presença, divulgando a ideologia da negritude, especialmente entre a classe média negra carioca.

Por essa mesma época o poeta Solano Trindade, que vinha já de atividades anteriores como fundador, em 1936, de um Centro de Cultura Afro-Brasileira, antigo participante da Frente Negra Brasileira em Pernambuco e criador de um grupo de arte popular no Rio Grande do Sul, procura fundar, no Rio de Janeiro, em 1945, o Teatro do Povo. essa sua idéia não teve êxito em conseqüência de dificuldades financeiras e ideológicas que surgiram.

Reúne-se a Haroldo Costa em 1948 para formarem o Teatro Folclórico Brasileiro, dele no entanto se afastando quando o empresário Askanasi transformou-o em uma empresa meramente comercial. Ainda no sentido de organizar o negro culturalmente, fundou juntamente com Edison Carneiro e Dirceu de Oliveira o Teatro Popular Brasileiro, composto de artífices, operários de fábricas, domésticas e pessoas de outras camadas populares. Com esse grupo viajou ao exterior, obtendo êxito em várias capitais européias. O Teatro Popular, no entanto, dispersou-se logo após seu regresso.

Solano Trindade, em São Paulo, tenta reorganizá-lo, continuando com exibições esporádicas até a sua morte.

Por outro lado, não devemos nos esquecer das organizações negras que se articularam durante muito tempo e continuamente, atravessando os períodos de crise aguda da sociedade brasileira. No interior de São Paulo, especialmente, essas entidades funcionaram em solução de continuidade durante muitos anos e existem até hoje em número calculado em mais de cem. Temos como exemplos as que funcionam como clubes de lazer nas cidades de Campinas, Sorocaba, Piracicaba, São Carlos, Jundiaí, Araraquara, Catanduva e em outras cidades, muitas delas fundadas há mais de trinta e até cinqüênta anos.

Renascimento negro

Mas, na capital de São Paulo, no Rio de Janeiro e em outras capitais, somente depois de 1954 há um renascimento negro que enseja a possibilidade de se organizarem entidades negras significativas.

Em São Paulo, em dezembro de 1954 foi organizada a Associação Cultural do Negro, que passou a funcionar, inicialmente, numa sala da rua São Bento. O seu presidente era Geraldo Campos de Oliveira; o seu vice-presidente, Américo Orlando da Costa. Sua direção era composta de uma Diretoria Executiva, com oito membros, e um Conselho Superior, presidido por José Correia Leite (um veterano líder, fundador do Clarim da Alvorada), e tendo como secretário Américo dos Santos. O seu Conselho compunha-se de 29 membros. A ACN possuía departamentos de Cultura, Esporte, Estudantil, Feminino, e uma Comissão de Recreação. Geraldo Campos de Oliveira dinamizou as atividades da associação e editou um Caderno de Cultura Negra. Em 1958 a entidade centrou as suas atividades no registro dos 70 anos da Aboliçnao. A ela juntaram-se para realizar esses atos, o Teatro Experimental do Negro (de São Paulo); o Teatro Popular Brasileiro, de Solano Trindade; a Associação Paulista dos Amigos do Homem do Norte e do Nordeste; o Grêmio Estudantil Castro Alves; a Sociedade Recreativa José do Patrocínio de São Miguel; e o Fidalgo Clube.

Discutiu-se, na época, qual deveria ser a ideologia que o negro devia adotar para a sua libertação étnica, desdobrando-se esse debate em diversos nívels, que iam do cultural ao político. Esse aspecto de poliemica ideológica vai desaparecendo especialmente a partir do golpe militar de 1964.

A ACN, depois de algum tempo inativa, muda-se, em 13 de maio de 1977, para o bairro da Casa Verde, com objetivos mais assistenciais e filantrópicos do que de reivindicação ideológica. Criou uma escola, com cursos de alfabetização e madureza que funcionavam gratuitamente.

Apesar de tudo isto, a Associação Cultural do Negro não tem mais o seu ethos inicial, tendo de fechar as suas portas.

Devemos salientar, também, o funcionamento das escolas de samba que serviam e servem de veículos de organização cultural do negro, centenas de pequenos clubes, recreativos ou com outras finalidades, espalhados em todo o território nacional, além de terreiros de Candomblé, Xangô, Macumba e Umbanda, que servem também para agrupar o negro brasileiro. Uma verdadeira teia nacional desses grupos mantém o negro unido e cria condições para a preservação da sua memória afro-brasileira.

Por outro lado, a situação do Brasil durante o golpe militar que foi instaurado no país impossibilitou qualquer diálogo democrático entre esses grupos negros e as autoridades autoritárias que semper os viram como desconfiança, acreditando serem pontos de subversão.

Em consequência da saída dos militares do poder, fundam-se organizações mais estruturadas, que retomam a tradição de uma posição de luta étnica e cultural. Essas organizações articulam-se e promovem uma série de atividades culturais, sociais e recreativas, tomando, de vez em quando, posições abertas contra o preconceito racial. A unificação dessas organizações deu-se, finalmente, a partir do dia 18 de junho de 1978, quando da realização de um ato público de protesto nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. Os fatos que determinaram a sua convocação foram a morte do trabalhador negro Róbson Silveira da Luz, no mês de maio, devido a torturas em uma delegacia de Guaianases, na capital de São Paulo; a expulsão, no mês de maio, de quatro atletas juvenis negros do Clube de Regatas Tietê; e, finalmente, o assassinato por um policial, no bairro paulistano da Lapa, de Nilto Lourenço, operário negro.

Durante esse ato foi criado o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, depois abreviado para Movimento Negro Unificado.

A partir daí várias outras organizações de militantes surgiram no Brasil inteiro e atualmente reivindicam o fim do racismo e da exploração econômica, social e cultural do negro. Mas esta é uma história que ainda está sendo vivida, para depois ser contada.

1

ORICO, Osvaldo. O Tigre da Abolição. São Paulo, Nacional, 1931, p. 190.

2

Idem, ibidem, p. 191.

Vocabulário crítico

Ladino: nome dado ao africano já instruído na língua portuguesa, religião e serviços domésticos ou do campo. Ladino é corruptela de latino, equivalente a letrado, culto, inteligente. Segundo Gonçalves Viana, o termo foi originalmente aplicado em Portugal e na Espanha ao mouro bilíngüe e, portanto, inteligente.

Manumissão: ato de dar-se alforria ao escravo. Havia várias maneiras de manumitir, dependendo da vontade ou condições de cada caso particular.

Mocamau: escravo refugiado em quilombo, termo de possível origem africana. O mesmo que quilombola.

Pombeiros: indivíduos que compravam escravos no interior da África para transportá-los e vendê-los no litoral. Atuavam nas feiras de escravos a mando dos seus respectivos senhores. Acompanhados por outros escravos negros, sob suas ordens, rumavam para o "sertão" levando as mercadorias destinadas às permutas, tais como ferro, cobre, utensílios de cozinha, aguardente, sal etc.

Serão: segundo Debret, em certas épocas, nas grandes fazendas de café ou de cana, o trabalho se prolongava até meia-noite; é o que se chama serão. Quando acontece, por exemplo, caírem chuvas abundantes ou se verificarem borrascas, por ocasião da maturação do café, ocupam-se todos os braços, alugando-se mesmo outros para fazerem serão.

Tigre: barril de madeira de tamanho médio, que servia para a coleta de excremento das casas localizadas na região urbana no Brasil escravista. Como não existia esgoto, depois de cheias essas vasilhas eram dadas aos escravos para que eles procurassem um lugar distante para atirar os dejetos. Muitas vezes a sua madeira já estava podre e o conteúdo derramava-se pela cabeça e corpo do escravo que o conduzia.

Trezena: castigo que consistia em vergastar o escravo considerado insubordinado durante treze dias seguidos, publicamente. Não havia limites para o número de vergastadas em cada dia, embora a lei estabelecesse um máximo de cinqüenta. Quando o castigo era aplicado em nove dias, chamava-se de novena.

Bibliografia comentada


ANAIS DO ARQUIVO PÚBLICO DA BAHIA. Autos de devassa do levantamento e sedição intentados na Bahia em 1798. Salvador, Imprensa Oficial da Bahia, 1959, v. 35-6.

Contém a parte fundamental dos documentos originais do processo contra os implicados na chamada Inconfidência Baiana. A outra parte foi publicada pela Biblioteca Nacional nos seus anais, volumes 43-5 (1931).


AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

Trabalho que aborda, através de uma posição renovadora, a problemática da transição do escravismo para o trabalho livre. Procura ver a problemática não como se tem feito usualmente, achando o trabalhador negro incapaz para o trabalho assalariado, mas mostrando os mecanismos econômicos e ideológicos que criaram essa imagem.


FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista; 1915-1963. São Paulo, FFLCH/USP, 1986.

Monografia sobre a imprensa negra que circulou nesse período, com levantamento da sua ideologia, da estrutura das suas empresas e dos elementos que fizeram com que ela desaparecesse.


MOREL, Edmar. A revolta da chibata. Rio de Janeiro, Graal, 1979.

Livro escrito com amor, coragem e paixão, tornou-se indispensável para quem deseja conhecer a revolta dos marinheiros negros liderados por João Cândido. A paixão com que foi escrito não lhe tira a objetividade. Baseado em farta documentação e pesquisas pessoais, o autor elaborou uma obra-documento que recoloca no seu devido lugar um dos acontecimentos históricos dos mais relevantes e caluniados.


PERDIGÃO, Malheiro. A escravidão no Brasil. São Paulo, Cultura, 1944.

Obra clássica e insubstituível para quem deseja ter uma versão histórica do que foi a escravidão indígena e africana no Brasil. Uma abundante documentação de fontes primárias enriquece ainda mais a obra.


SALVADOR, José Gonçalves. Os magnatas do tráfico negreiro. São Paulo, Pioneira/USP, 1981.

Obra analítica e precisa que mostra os mecanismos reguladores do tráfico de escravos nas suas diversas épocas, baseado em documentação de primeira ordem.


TINHORÃO, José Ramos. Os sons dos negros no Brasil. São Paulo, Art, 1988.

Livro que aborda com grande senso analítico a influência do negro no surgimento da quase totalidade da nossa música popular. O autor procura analisar as origens dessas manifestações, resgatando as suas matrizes negras até hoje sonegadas ou superficialmente estudadas.


VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo; do tráfico de escravos entre o golfo de Benin e a baía de Todos os Santos. São Paulo, Corrupio, 1987.

Trabalho de pesquisa exaustiva sobre o tráfico de escravos africanos entre a região do golfo de Benin e a Bahia. O autor mostra a acumulação conseguida pelos traficantes baianos através de uma estratégia que permitiu escapar do tráfico triangular clássico.