A variável cultural

Mas o negro não apenas povoou o Brasil e deu-lhe prosperidade econômica através do seu trabalho. Trouxe, também, as suas culturas que deram o ethos fundamental da cultura brasileira.

Vindo de várias partes da África, os negros escravos trouxeram as suas diversas matrizes culturais que aqui sobreviveram e serviram como patamares de resistência social ao regime que os oprimia e queria transformá-los apenas em máquinas de trabalho. Em todas as áreas de trabalho os africanos incorporavam os seus modos de vida – a sua religião, indumentária, cozinha, música, sistemas de regadio e plantação e outras manifestações sociais – àqueles habitantes mais antigos do nosso território, índios e portugueses.

Com a instalação de um governo despótico escravista, capaz de manter a ordem contra as manifestações da quilombagem, as suas diversas culturas foram consideradas primitivas, exóticas e somente consentidas enquanto estivessem sob o controle do aparelho dominador. A exteriorização desses traços culturais somente era permitida como tática de dominação social, isto é, enquanto os negros permanecessem usando-as como manifestações de uma classe dominada. Toda a estrutura desse controle cultural, nas suas diversas gradações, foi racionalizada para que os padrões dessas diversas culturas africanas fossem considerados inferiores.

Por outro lado, dentro do contexto colonial-escravista as religiões africanas eram consideradas especialmente exóticas e, ao mesmo tempo, perigosas. Isto acontecia, em primeiro lugar, em decorrência do monopólio da Igreja Católica nesse nível, pois somente os seus preceitos de explicação do sobrenatural eram considerados verdadeiros. Em segundo, a religião que detinha o monopólio da explicação do sobrenatural tinha poderes, também, de explicar o natural. Daí porque a Igreja Católica procurou, através daquilo que foi chamado posteriormente de sincretismo, penetrar e desarticular o mundo religioso do africano escravizado, usando o método catequista, batizando-o coercivamente, num trabalho de cristinização que nada mais era do que tentativas, via estruturas de poder, de monopolizar o sagrado e influir poderosamente no plano social e político. Esse sincretismo, por isto mesmo, era unilateral. Era um sincretismo de uma só via. A Igreja Católica somente permitia esse chamado processo sincrético de cima para baixo, jamais permitindo a contaminação dos seus princípios teológicos pelas posições animistas, fetichistas, e por isso mesmo primitivas, das religiões dominadas. Com esse sincretismo de uma só via acreditava-se que, dentro de pouco tempo, essas religiões desapareceriam no bojo de um catolicismo popular, o qual seria anexado ao corpo da Igreja Católica.

Cultura de resistência

No entanto, durante a escravidão o negro transformou não apenas a sua religião, mas todos os padrões das suas culturas em uma cultura de resistência social. Essa cultura de resistência, que parece se amalgamar no seio da cultura dominante, no entanto desempenhou durante a escravidão (como desempenha até hoje) um papel de resistência social que muitas vezes escapa aos seus próprios agentes, uma função de resguardo contra a cultura dos opressores.

Toda uma literatura, por essas razões, foi arquitetada e continua funcionando no sentido de mostrar que as religiões africanas, e posteriormente as afro-brasileiras, são inferiores, no máximo consentidas por munificência dos senhores, durante a escravidão, e dos aparelhos de poder das classes dominantes, após a Abolição.

A mesma coisa aconteceu com seus instrumentos rituais, que passaram a ser instrumentos típicos, com as suas manifestações musicais, sua música, indumentária africana, a cozinha sagrada dos candomblés. Tudo isso passou a ser simplesmente folclore. E com isto subalternizou-se o mundo cultural dos africanos e dos seus descendentes. A dominação cultural acompanhou a dominação social e econômica. O sistema de controle social passou a dominar todas as manifestações culturais negras, que tivem, em contrapartida, de criar mecanismos de defesa contra a cultura dominadora.

Sempre a defesa do dominado, do oprimido, do discriminado é ambígua. Aquele que não pode atacar frontalmente procura formas simbólicas ou alternativas para oferecer resistência a essas forças mais poderoas. Dessa forma o sincretismo assim chamado não foi a incorporação do mundo religioso do negro à religião dominadora, mas, pelo contrário, uma forma sutil de camuflar internamente os seus deuses para preservá-los da imposição da religião católica.

O conceito mais abrangente de aculturação, por seu turno, procurou explicar o comportamento atual do negro como sendo fruto do contato contínuo entre o dominador e o dominado, desejando o primeiro impor os seus padrões culturais e o segundo, imitá-los e absorvê-los.

O sistema escravista, pelos métodos de repressão que os seus representantes praticavam, repeliu os valores das culturas dominadas. Em contrapartida, os seus adeptos procuravam disfarçá-los, fazê-los aparecer sob outras formas, mas sempre mantendo o seu significado simbólico inicial. Não havia como fugir à religião oficial, num tempo em que existia o monopólio do poder político e o monopólio do poder religioso, pela classe senhorial e a Igreja Católica respectivamente. Daí o mecanismo de defesa sincrético dos negros.

A mesma coisa aconteceu com as suas línguas. Não possuindo unidade lingüística, os africanos foram obrigados a criar uma que fosse comum para que se pudessem entender. Os povos banto que chegaram em primeiro lugar e aqueles que habitavam a parte sudanesa da África, posteriormente, incorporaram ao nosso léxico milhares de vocábulos na estrutura do português. No entanto, ninguém, ou quase ninguém, viu essa incorporação como um fator de enriquecimento, mas, muito pelo contrário, criou-se a palavra chulo para designar esses vocabulários. A mesma coisa podemos dizer da indumentária, que passou a ser considerada roupa típica; da cozinha, da música, da arquitetura. Todos esses elementos culturais africanos foram classificados como cultura rústica, folclore. Somente a cultura ocidental-cristã tinha o direito de manipular os aparelhos de dominação cultural. Com isto, as manifestações culturais das populações oprimidas, as afro-brasileiras em particular, foram consideradas como elementos marginais à elaboração do ethos nacional.

Autodefesa da cultura oprimida

As culturas africanas, durante a escravidão, e a dos afro-brasileiros, dpeois, diante dessa manobra asfixiadora da classe senhorial e do seu aparelho ideológico, passaram a desempenhar a função de instrumento de autodefesa dos oprimidos social e economicamente. Durante a quilombagem os negros rebeldes encontravam em alguns dos seus padrões culturais elementos de proteção social.

No que concerne às religiões africanas, ou afro-brasileiras por extensão, à sua evolução/transformação no contexto e à sua função social nesse contexto novo, Roger Bastide escreve:

Apesar das condições adversas da escravidão, misturando as etnias, fragmentando as estruturas sociais nativas, impondo aos negros novo ritmo de trabalho e novas condições de vida, as religiões transportadas do outro lado do Atlântico não estão mortas. Vieira exprimia bem esta posição entre a sociedade, dominada e regulada pelas normas portuguesas, e as civilizações, vindas da África, escrevendo que o Brasil "tem o corpo (europeu) na América e a alma da África". Mas as crenças que permanecem confinadas nos segredos dos corações, que se exprimem em ritos e cerimônias, nem tomam formas coletivas de organização, estão fatalmente condenadas à morte. A religião, ou religiões afro-brasileiras foram obrigadas a procurar nas estruturas sociais que lhes eram impostas, "nichos", por assim dizer, onde pudessem se integrar e se desenvolver. Deviam se adaptar a novo meio humano, e nesta adaptação não se iria processar nem profundas transformações da própria vida religiosa. Tornava-se necessário encontrar entre as superestruturas – outrora em conexão com a família, com a aldeia, com a tribo – e as novas infra-estruturas – a grande platação ou centro urbano, a escravidão e a sociedade de castas hierarquizadas dominada pelos senhores brancos – laços ignorados, formas de passagem inéditas, encarnando-se no corpo social, e este, por sua vez, deixando-se penetrar por esses valores diferentes, como modelos ou normas. 1

O que Bastide demonstra, no trecho acima, é que as culturas negras dominadas usaram de diversas estratégias de preservação dos seus valores dentro do contexto social escravista, onde estavam engastas, ou, em outras palavras, criaram mecanismos de defesa contra a escravidão e os seus valores, a partir dos seus próprios valores e padrões culturais. Tanto as culturas banto como as sudanesas que para aqui vieram tinham isto em comum: transformaram-se em anteparos de resistência do escravo na situação especial na qual os seus membros se encontravam. Houve, por isto, uma substituição de função desses padrões culturais, especialmente das suas religiões. O escravo resistia com as armas de que dispunha, e as suas culturas desempenharam um papel muitas vezes apenas simbólico, outras vezes como veículo ideológico de luta na sociedade escravista.

Após a escravidão, os grupos negros que se organizaram como específicos, na sociedade de capitalismo dependente que a substituiu, também aproveitaram os valores culturais afro-brasileiros como instrumentos de resistência.

Isto não quer dizer que se conservassem puros, pois sofrem a influência aculturativa (isto é, branqueadora) do aparelho ideológico dominante. É uma luta ideológico-cultural que se trava em todos os níveis, ainda diante dos nossos olhos. O exemplo das escolas de samba, especialmente no Rio de Janeiro – que perderam a sua especificidade de protesto simbólico espontâneo de antigamente para se institucionalizarem, assumindo proporções d eum colossalismo quantitativo e competitivo antipopular e subordinando-se a instituições ou grupos financiadores que as despersonalizam inteira ou parcialmente do seu papel inicial –, exemplifica o que estamos afirmando.

Mesmo quando a temática é eventualmente de protesto, ela está subordinada a uma concessão ideológica, implícita ou explícita, dos grupos que as dirigem, orientam e patrocinam.

Por outro lado, a dinâmica interna desses grupos encontra combustível ideológico para reagir e criar novos grupos que se articulam dentro de padrões afro-brasileiros independentes e reiniciam a trajetória abandonada pelos grupos negros que se institucionalizaram.

1

BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo, Pioreira, 1971. 2v., v. 1, p. 85.