Em busca da cidadania

Ser negro é os costumes dizerem que vais ter de conquistar os direitos que a constituição te garantia já. – TURNER BROWN JR.

As festividades iniciais da Abolição

O dia 14 de maio foi festivo para grande parte dos escravos que saíram das senzalas. Durante a euforia predominante, supuseram que haviam conquistado a liberdade e que os caminhos da cidadania estavam abertos para eles. A princesa Isabel apssou a ser, para a sua maioria, o símbolo da redenção do cativeiro. Os ex-escravos tinham como certa a sua equiparação aos demais cidadãos do Império. Houve uma parcela de negros que criou o isabelismo, pensamento que reinvindicava a defesa da princesa regente por acreditarem que ela fosse a personalidade que os redimira da escravidão num ato de bondade pessoal.

José do Patrocínio foi o mais fervoroso adept do isabelismo, e procurou aliciar libertos para defender a monarquia ameaçada pela onda republicana que crescera após a Abolição. Não satisfeito em beijar os pés da Redentora, José do Patrocínio inicia a arregimentação de ex-excravos, capoeiras e marginais de um modo geral, para fundar a Guarda Negra. Esse ajuntamento tinha como finalidade impedir a propaganda republicana, inclusive com a tarefa de dissolver comícios pela violência. Essa posição dos elemntos por José do Patrocínio deu muito trabalho às autoridades e impediu, em muitos casos, que os adversários da monarquia se manifestassem. Os seus membros conseguiram dissolver muitos comícios republicanos através da violência.

A áspera estrada do negro pela conquista da cidadania começava. Julgando-se cidadão, pensando poder invocar os seus direitos, o egresso das senzalas teve uma grande decepção. A sua cidadania nada mais era do que um símbolo habilmente elaborado pelas classes dominantes para que os mecanismos repressivos tivessem possibilidades de elaborar uma estratégia capaz de colocá-lo emparedado num imobilismo social que dura até os nossos dias.

Por tudo isto, a primeira tentativa de manifestar-se contestatoriamente foi de forma equivocada: Segundo registra a crônica da época, houve mesmo mortes em comícios republicanos pelas quais a Guarda Negra foi responsabilizada. Osvaldo Orico, biógrafo de José do Patrocínio, assim descreve a situação:

Incompreensível por um lado, mas explicável por outro, essa famigerada Guarda Negra tivera um inspirador. Não fora outro senão José do Patrocínio. O fanatismo abrira-lhe na alma a ilusão desse recurso com que imaginava cercar de garantias o prestígio da Redentora de sua raça. Foi a gratidão que o moveu a provocar e a sugerir um movimento de solidariedade dos libertos para com a padroeira inesquecível. E, ao toque de reunir, acorreram de todo lado os antigos sentenciados do cativeiro, ansiosos de oferecer com a força material do peito aberto a flor do seu reconhecimento heróico. Os acontecimentos registrados na capital e no interior, durante a fase em que se fez sentir a influência da Guarda Negra e se apelou para a sua incontida violência, mostraram como fora infeliz a ideia de arregimentar no antigo holocausto das senzalas a força que deveria guardar o Trono. Inaugurou-se uma época de terror que deu à nação enormes prejuízos em dinheiro e em vidas. Onde quer que brilhasse a centelha da luz republicana, surgir aí o conflito das raças, desencadeado pela fúria dos libertos em louvor à rainha. E amiudaram-se os atentado e morticínios. Na rua do Passeio; em frente à Secretaria de Justiça; em dias de março de 89, durante a agitação popular que a frebre amarela e a falta de água provocaram, a Guarda Negra deixou indícios de sua lamentável influência. 1

Nas cidades de Campos e Lage do Murié, ainda segundo Osvaldo Orico, a Guarda Negra agiu com violência contra os republicanos:

Na primeira localidade em uma reunião republicana que se processava pacificamente, massa enorme de policiais e liertos armados invadiu o edifício em que se realizava um banquete democrático, alarmou as senhoras, desrespeitou com ameaças a intervenção amistosa do pároco, que suplicava das janelas do templo ordem e clemência, disparou tiros, arremessou garrafas, espancou e feriu, tudo isto para levantar entre acompanhamentos bélicos vivas e saudações à rainha. Na segunda, a polícia, após uma série de distúrbios, prendeu no tronco um honrado cidadão por suspeita de ideiais republicanos. 2

A Guarda Negra era um movimento contraditório e confuso. Apoiava a monarquia porque os escravos conseguiram libertar-se do cativeiro através da magnanimidade da princesa Isabel. Via a Abolição como um ato de munificiência social praticado pela regente, sem analisar as estratégias ocultas nessa medida e as conseqüências negativas que a Abolição traria, feita da forma inconclusa como o foi.

Por outro lado, deixaram de pressionar os republicanos, especialmente os mais democratas, como Silva Jardim, no sentido de radicalizar o seu programa, exigindo reformas sociais e econômicas estruturais, como a distribuição de terra aos ex-escravos. Foi, portanto, um movimento conjuntural e reacionário, e o próprio José do Patrocínio, ao ver proclamada a República, foi um dos primeiros a aderir ao novo regime. Com isto, a Guarda Negra se desarticulou completamente logo depois da proclamação da República, vindo a desaparecer sem maiores conseqüências.

Nesse período de transição, os negros recém-saídos da escravidão passaram a se organizar de várias formas alternativas, especialmente em grupos de lazer, culturais ou esportivos. Por outro lado, levando-se em consideração a forma como a Abolição foi feita, descartando-os da participação naquelas reformas estruturais que as mudanças do momento estavam a exigir, as reminiscências do sistema escravista e da Redentora continuaram existindo como ideologia de apoio psicológico em diversos grupos negros de ex-escravos. Isto retardou ainda mais o processo, pois a Guarda Negra tinha uma ideologia de retrocesso, de volta ao passado e ao mesmo tempo utópica (monarquia sem escravidão), quando devia exigir medidas de avanço sociais radicais.

A revolta da chibata

Uma das instituições na qual o comportamento escravista dos seus superiores mais se evidenciava era a Marinha de Guerra do Brasil. O uso do açoite como medida disciplinar continuou sendo aplicado nos marinheiros, como no tempo em que existia o pelourinho. Todos os marinheiros, na sua esmagadora maioria negros, continuavam a ser açoitados às vistas dos companheiros, por determinação da oficialidade branca.

Os demais marujos eram obrigados a assistir à cena infamante no convés das belonaves. Com isto, criaram-se condições de revolta no seio da marujada. Os seus membros não aceitavam mais passivamente esse tipo de castigo. Chefiados por Francisco Dias, João Cândido e outros tripulantes do Minas Gerais, navio capitânia da esquadra, organizaram-se contra a situação humilhante de que eram vítimas. Nos outros navios a marujada também se organizava: o cabo Gregório conspirava no São Paulo, e no Deodoro havia o cabo André Avelino.

Dia 22 de novembro de 1910. Final praticamente de mais um ano do início do governo marechal Hermes da Fonseca. A informação chega até o presidente: a esquadra se sublevara. O movimento que vinha sendo articulado pelos marinheiros foi antecipado em face da indignação dos marujos contra o espancamento de mais um companheiro. O marinheiro negro Marcelino recebeu 250 chibatadas aos olhos de toda a tripulação, formada no convés do Minas Gerais. Desmaiou, mas os açoites continuaram.

Os marinheiros, tendo João Cândido como líder, resolveram sublevar-se imediatamente. Num golpe rápido, apoderaram-se dos principais navios da Marinha de Guerra brasileira e se aproximaram do Rio de Janeiro. Em seguida mandaram mensagem ao presidente da República e ao ministro da Marinha exigindo a extinção do uso da chibata.

O governo ficou estarrecido. Supôs tratar-se de um golpe político das forças inimigas. O pânico apoderou-se de grande parte da população da cidade. Muitas pessoas fugiram. Somente em um dia correram 12 composições especiais para Petrópolis, levando 3000 pessoas. Todos os navios fiéis ao governo ainda tentaram duelar com os revoltosos, mas foram logo silenciados. Com isto os marujos criaram um impasse institucional. De um lado a Marinha, que queria a punição dos amotinados, em conseqüência da morte de alguns oficiais da armada. Do outro lado, o governo e os políticos, que sabiam não ter forças para satisfazer essa exigência. Mesmo porque os marinheiros estavam militarmente muito mais fortes do que a Marinha de Guerra, pois comandavam, praticamente, a armada e tinham os canhões de suas belonaves apontados para a capital da República.

Depois de muitas reuniões políticas, nas quais entrou, entre outros, Rui Barbosa, que condenou os "abusos com os quais, na gloriosa época do abolicionismo, levantamos a indignação dos nossos compatriotas", foi aprovado um projeto de anistia para os amotinados. Com isto, os marinheiros desceram as bandeiras vermelhas dos mastros dos seus navios. Desaparecia, assim, o uso da chibata como norma de punição disciplinar na Marinha de Guerra do Brasil.

As forças militares, não-conformadas com a solução política encontrada para a crise, apertam o cerco contra os marinheiros. João Cândido, sentindo o perigo, ainda tenta reunir o Comitê Geral da Revolução, inutilmente. Procuram Rui Barbosa e Severino Vieira, que defenderam a anistia em favor deles, mas sequer são recebidos por esses dois políticos. Unem-se, agora, civis e militares para desafrontar os "bríos da Marinha de Guerra" por eles atingidos. Finalmente vem um decreto pelo qual qualquer marinheiro podia ser sumariamente demitido. A anistia fora uma farsa para desarmá-los.

São acusados de conspiradores, espalham boates de que haveria uma outra sublevação. Finalmente, afirmam que a guarnição da ilha das Cobras havia se sublevado. Pretexto para que a repressão se desencadeasse violentamente sobre os marinheiros negros. O presidente Hermes da Fonseca necessitava de um pretexto para decretar o estado de sítio, a fim de sufocar os movimentos democráticos que se organizavam. As oligarquias regionais tinham interesse em um governo forte. Os poucos sublevados daquela ilha propõem rendição incondicional, o que não é aceito. Segue-se uma verdadeira chacina. A ilha é bombardeada até ser arrasada. Estava restaurada a honra da Marinha.

João Cândido e os seus companheiros de revolta são presos incomunicáveis, e o governo e a Marinha resolvem exterminar fisicamente os marinheiros. Embarca-os no navio Satélite rumo ao Amazonas.

Os 66 marujos que se encontravam em uma masmorra do Quartel do Exército e mais 31, que se encontravam no Quartel do 1o. Regimento de Infantaria, são embarcados junto com assassinos, ladrões e marginais para serem descarregados nas selvas amazônicas. Os marinheiros, porém, tinham destino diferente dos demais embarcados. Ao lado dos muitos nomes da lista entregue ao comandante do navio, havia uma cruz vermelha, feita a tinta, o que significava a sua sentença de morte. Esses marinheiros foram sendo parceladamente assassinados: fuzilados sumariamente e jogados ao mar.

João Cândido, que não embarca no Satélite, juntamente com alguns companheiros foram recolhidos a uma masmorra na ilha das Cobras, onde viviam como animais.

Dos 18 recolhidos ali, 16 morreram. Uns fuzilados sem julgamento, outros em conseqüência das péssimas condições em que viviam enclausurados. João Cândido enlouqueceu, sendo internado no Hospital dos Alienados. Tuberculoso e na miséria, consegue, contudo, restabelecer-se física e psicologicamente. Perseguido constantemente, morre como vendedor no Entreposto de Peixes da cidade do Rio de Janeiro, sem patente, sem aposentadoria e até sem nome, este herói que um dia foi chamado, com médito, de Almirante Negro.

Uma voz independente para o negro

A revolta dos marinheiros de João Cândido termina, como vimos, em 1911. Quatro anos depois tem início, em São Paulo, uma relevante manifestação de identidade étnica, das mais importantes para conhecermos a trajetória do negro brasileiro na luta pela sua cidadania. Referimo-nos à chamada imprensa negra paulista, cujo primeiro jornal intitula-se O Menelick e começa a circular em 1915. Fenômeno dos mais significativos para se analisar o comportamento e a ideologia desse segmento negro urbano, os jornais editados por negros paulistas sucedem-se até 1963, quando é fechado o Correio d'Ébano.

Os negros paulistas, sentindo a necessidade de um movimento de identidade étnica, e enfrentando as barreiras de uma imprensa branca (Grande Imprensa) impermeável aos anseios e reivindicações da comunidade, recorreram à solução mais viável, que era fundar uma imprensa alternativa, na qual os seus desejos, as denúncias contra o racismo, bem como a sua vida associativa, cultural e social se refletissem.

Conforme dissemos, o primeiro desses órgãos foi O Menelick, que conseguiu o grande prestígio na comunidade negra, difundindo aquilo que os seus redatores achavam mais interessante para a vida social e cultural dos negros. Após o primeiro, outros se sucederam na seguinte ordem: A rua e O Xauter, 1916; O Alfinete, 1918. O Bandeirante, 1919; A Liberdade, 1919; A Sentinela, 1920; O Kosmos, 1922; O Getulino, 1923; O Clarim da Alvorada e Elite, 1924; Auriverde, O Patrocício e O Progresso, 1928; Chibata, 1932; A Evolução e A Voz da Raça, 1933; O Clarim, O Estímulo, A Raça e Tribuna Negra, 1935; A Alvorada, 1936; Senzala, 1946; Mundo Novo, 1950; O Novo Horizonte, 1954; Notícias de Ébano, 1957; O Mutirão, 1958; Hífen e Niger, 1960; Nosso Jornal, 1961; e Correio d'Ébano, 1963.

Esse conjunto de periódicos que se sucedem durante quase cinqüênta anos influirá significativamente na formação de uma ideologia étnica do negro paulista e irá influir, de certa maneira, no seu comportamento. Concentrando o seu noticiário nos acontecimentos da comunidade, divulgando a produção dos seus intelectuais nas páginas dessas publicações, aconselhando, orientando e criando, mesmo, um código de moral puritana para ser obedecido pelos negros, essa imprensa "feita por negros para negros" marcou profundamente o pensamento do negro paulista.

Os seus sobreviventes, como José Correira Leite, Francisco Lucrécio e Aristides barbosa ainda rememoram com nostalgia esse período. Esses jornais, mantidos pelos próprios grupos que os editavam e alguns membros da comunidade que se cotizavam para ajudá-los, constituíram um fato único no Brasil. A obstinação desses grupos negros em manterem um espaço ideológico e informativo independente, bem como a sua consciência étnica, determinou a sua continuidade, embora intermitente. Por outro lado, esses jornais também serviram de veículo organizacional dos negros. As discussões que se travam nas suas páginas, a colocação permanente de problemas específicos da comunidade, as denúncias contra o racismo e a violência através de fatos concretos, tudo isso levou a que os negros de São Paulo fundassem o maior movimento político negro do Brasil: a Frente Negra Brasileira.

Esses jornais, conforme já dissemos, não refletiam nas suas páginas os grandes acontecimentos nacionais. Nada sabemos, pela sua leitura, da Coluna Prestes, da revolução de 1930, do movimento de 1932 em São Paulo, da revolta comunista de 1935 e de outros acontecimentos relevantes nesse período. Há, mesmo, uma certa cautela tática, pois neles também não se encontram notícias ou comentários sobre o movimento sindical, as lutas operárias, greves e a participação dos negros nesses eventos. Também não se encontram críticas ao governo. É uma imprensa altamente setorizada nas suas informações e dirigida a um público específico.

Os seus dois jornais mais importantes, O Clarim da Alvorada e A Voz da Raça, tiveram papel saliente e significativo no despertar da consciência étnica do negro paulista. O primeiro municiou a comunidade de dados e informações preciosos para que o negro se auto-identificasse na sua negritude. O segundo foi o órgão da Frente Negra Brasileira, morvimento que marcou profundamente a consciência do negro, não apenas em São Paulo mas também em outros Estados e elevou o nível de tomada da sua identidade étnica.

A Frente Negra Brasileira

No bojo dessa movimentação ideológica da comunidade negra paulistana, através dos seus jornais, surge a idéia da formação da Frente Negra Brasileira. Ela irá constituir-se em um movimento de caráter nacional, com repercurssão internacional. Surgiu da obstinação de negros abnegados, como Francisco Lucrécio, Raul Joviano do Amaral, José Correia Leite (que, depois, dela se afastará por motivos ideológicos) e mais alguns.

Fundada em 16 de setembro de 1931, a sua sede social central localizava-se na rua Liberdade, na capital paulista. Sua estrutura organizacional já era bastante complexa, muito mais do que a quase inexistente dos jornais. Era dirigida por um Grande Conselho, constituído de 20 membros, selecionando-se, dentre eles, o Chefe e o Secretário. Havia, ainda, um conselho Auxiliar, formado pelos Cabos Distritais da Capital.

Criou-se, ainda, uma milícia frente-negrina, organização paramilitar. Os seus compomentes usavam camisas brancas e recebiam rígido tratamento, como se fossem soldados. Segundo um dos seus fundadores – Francisco Lucrécio –, a Frente Negra foi fundada por ele e outros companheiros embaixo de um poste de iluminação. Ainda segundo a mesma testemunha, no início houve muita incompreensão. Diziam que eles estavam fazendo racismo ao contrário. No entanto, com o tempo, os membros da Frente Negra foram adquirindo a confiança não apenas da comunidade, mas de toda a sociedade paulistana. As próprias autoridades a respeitavam. Os seus membros possuíam uma carteira de identidade expedida pela entidade, com retratos de frene e de perfil. Quando as autoridades policiais encontravam um negro com esse documento, respeitavam-no porque sabia que na Frente Negra só entravam pessoas de bem. Ainda segundo depoimento do Francisco Lucrécio, conseguiram acabar com a discriminação racial que existia na então Força Pública de São Paulo. Até aquela data os negros não poiam entrar na corporação. A Frente Negra inscreveu mais de 400 negros, tendo muitos deles feito carreira militar. Por outro lado, havia divergências na comunidade negra em relação à ideologia da Frente, pois muitos não aceitavam a ideologia patrianovista (monarquista) que o seu primeiro presidente, Arlindo Veiga dos Santos, queria impor aos seus membros. Isso iria se refletir na trajetória da entidadde. Uma visão direitista levou muitos dos seus adeptos a posições simpáticas em relação ao integralismo e ao nazismo.

Paradoxalmente, o conceito de raça é manipulado pelos frente-negrinos, que, no seu jornal A Voz da Raça, colocam como seu slogan "Deu, Pátria, Raca e Família", que depois foi modificado. Era um slogan decalcado diretamente do "Deus, Pátria e Família", da Ação Integralista. Apesar dessas contradições ideológicas, a Frente Negra se desenvolveu rapidamente, criando núcleos em vários Estados do Brasil. Milhares de negros, nas principais áreas do país, aderem ao seu ideário e passam a ser seus membros.

Em face dos êxitos alcançados, a Frente Negra resolveu transformar-se em partido político. Tinha todas as condições exigidas pela Justiça Eleitoral da época, e entrou com pedido nesse sentido em 1936. Sobre o assunto houve discussão entre membros do Tribunal, que chegaram a alegar uma tendência racista na Frente. Finalmente o seu registro foi concedido. Durou pouco, porém. Logo em seguida, 1937, o golpe de Estado deflagrado por Getúlio Vargas implantando o Estado Novo dissolverá todos os partidos, entre eles a Frente Negra Brasileira.

Houve um trauma muito grande na comunidade que a acompanhava ou militava nos seus quadros. Milhares de negros sentiram-se desarvorados politicamente. Um dos seus fundadores, Raul Joviano do Amaral, tenta conservar a entidade, mudando-lhe o nome para União Negra Brasileira. Mas a situação do país não era favorável à vida associativa no Brasil, onde a repressão via atos subversivos em qualquer organização. O jornal A Voz da Raça deixa de circular. A censura é imposta a todos os órgãos de imprensa, e a União, que procurou substituir a Frente, morre melancolicamente, em 1938, exatamente quando se comemoravam 50 anos da Abolição.

Nova articulação

O interregno do Estado Novo inibiu a comunidade negra nacionalmente do ponto de vista organizacional e ideológico. Da mesma forma como as entidades populares e democráticas, sindicatos, associações culturais e outras ficaram sob vigilância permanente dos órgãos de segurança e repressão, as organizações negras recuaram diante da situação. Passaram a se organizar, como simples, clubes de lazer, especialmente dançantes ou esportivos. Somente com a redemocratização, com a vitória dos Aliados e a derrota do nazismo, o negro começa a organizar-se outra vez de forma significativa.

Assim, em 1945 foi fundado, no Rio de Janeiro, o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, o qual tinha como objetivos principais a convocação de uma Assembléia Constituinte; anistia ampla e incondicional para os crimes políticos e conexos; extinção do Tribunal de Segurança Nacional; intensificação do esforço de guerra; liberdade de palavra escrita e falada; liberdade de agremiação; direito de voto aos membros das Forças Armadas sem distinção de postos e direito a sua participação na Assembléia Constituinte; direito de voto nos navios mercantes; reconhecimento do direito de greve; atamento de relações diplomáticas com a URSS; autonomia sindical; direito de sindicalização para o trabalhador das organizações autárquicas; assistência ao trabalhador rural; direito de sindicalização para as empregadas domésticas; liberdade de culto às religiões afro-brasileiras; ensino gratuito; punição às empresas que fazem seleção racial e de cor; aboliçnao das seleções raciais e de cor na diplomacia; aboliçnao da seleção de cor nas escolas militares; participação do negro nos assuntos de colonização e imigração; democratização de todas as organizações negras, aproximando-as das organizações dos brancos; fazer a aproximação das escolas de samba, clubes dançantes, associações esportivas, sociedades beneficientes, organizações religiosas, livrando-as da exploração política e comercial; e criar escolas de alfabetização em todo o território nacional.

O Comitê propunha, ainda, a realização de um Congresso Popular Brasileiro, colaborar com o Congresso de Artistas Plásticos e também, entre oturas coisas, o início de uma campanha para a construção de um monumento a José do Patrocínio.

Nessa mesma conjuntura de redemocratização surge, em 1944, o Teatro Experimental do Negro, no Rio de Janeiro, liderado por Abdias do Nascimento. Ensaiou e apresentou peças, dinamizou a consciência da negritude brasileira e editou um jornal, Quilombo, no qual o pensamento do grupo e a proposta do TEN se apresentavam à opinião pública.

O TEN teve de experimentar grandes dificuldades, quer financeiras, quer ideológicas, suspendendo as suas atividades no palco, mas sempre procurando levantar o problema do negro. Nesse sentido, o TEN organizou o Instituto Nacional do Negro e ao mesmo tempo procurou imprimir às suas atividades um conteúdo de elite cultural negra. Sob sua influência foi convocada a Conferência Nacional do Negro, em 1949. Desse encontro participaram Edison Carneiro, Guerreiro Ramos e outros intelectuais negros e brancos. Depois de mais algumas atividades sociais e artísticas menores, o TEN irá se desarticulando. A situação do TEN marcou significativamente sua presença, divulgando a ideologia da negritude, especialmente entre a classe média negra carioca.

Por essa mesma época o poeta Solano Trindade, que vinha já de atividades anteriores como fundador, em 1936, de um Centro de Cultura Afro-Brasileira, antigo participante da Frente Negra Brasileira em Pernambuco e criador de um grupo de arte popular no Rio Grande do Sul, procura fundar, no Rio de Janeiro, em 1945, o Teatro do Povo. essa sua idéia não teve êxito em conseqüência de dificuldades financeiras e ideológicas que surgiram.

Reúne-se a Haroldo Costa em 1948 para formarem o Teatro Folclórico Brasileiro, dele no entanto se afastando quando o empresário Askanasi transformou-o em uma empresa meramente comercial. Ainda no sentido de organizar o negro culturalmente, fundou juntamente com Edison Carneiro e Dirceu de Oliveira o Teatro Popular Brasileiro, composto de artífices, operários de fábricas, domésticas e pessoas de outras camadas populares. Com esse grupo viajou ao exterior, obtendo êxito em várias capitais européias. O Teatro Popular, no entanto, dispersou-se logo após seu regresso.

Solano Trindade, em São Paulo, tenta reorganizá-lo, continuando com exibições esporádicas até a sua morte.

Por outro lado, não devemos nos esquecer das organizações negras que se articularam durante muito tempo e continuamente, atravessando os períodos de crise aguda da sociedade brasileira. No interior de São Paulo, especialmente, essas entidades funcionaram em solução de continuidade durante muitos anos e existem até hoje em número calculado em mais de cem. Temos como exemplos as que funcionam como clubes de lazer nas cidades de Campinas, Sorocaba, Piracicaba, São Carlos, Jundiaí, Araraquara, Catanduva e em outras cidades, muitas delas fundadas há mais de trinta e até cinqüênta anos.

Renascimento negro

Mas, na capital de São Paulo, no Rio de Janeiro e em outras capitais, somente depois de 1954 há um renascimento negro que enseja a possibilidade de se organizarem entidades negras significativas.

Em São Paulo, em dezembro de 1954 foi organizada a Associação Cultural do Negro, que passou a funcionar, inicialmente, numa sala da rua São Bento. O seu presidente era Geraldo Campos de Oliveira; o seu vice-presidente, Américo Orlando da Costa. Sua direção era composta de uma Diretoria Executiva, com oito membros, e um Conselho Superior, presidido por José Correia Leite (um veterano líder, fundador do Clarim da Alvorada), e tendo como secretário Américo dos Santos. O seu Conselho compunha-se de 29 membros. A ACN possuía departamentos de Cultura, Esporte, Estudantil, Feminino, e uma Comissão de Recreação. Geraldo Campos de Oliveira dinamizou as atividades da associação e editou um Caderno de Cultura Negra. Em 1958 a entidade centrou as suas atividades no registro dos 70 anos da Aboliçnao. A ela juntaram-se para realizar esses atos, o Teatro Experimental do Negro (de São Paulo); o Teatro Popular Brasileiro, de Solano Trindade; a Associação Paulista dos Amigos do Homem do Norte e do Nordeste; o Grêmio Estudantil Castro Alves; a Sociedade Recreativa José do Patrocínio de São Miguel; e o Fidalgo Clube.

Discutiu-se, na época, qual deveria ser a ideologia que o negro devia adotar para a sua libertação étnica, desdobrando-se esse debate em diversos nívels, que iam do cultural ao político. Esse aspecto de poliemica ideológica vai desaparecendo especialmente a partir do golpe militar de 1964.

A ACN, depois de algum tempo inativa, muda-se, em 13 de maio de 1977, para o bairro da Casa Verde, com objetivos mais assistenciais e filantrópicos do que de reivindicação ideológica. Criou uma escola, com cursos de alfabetização e madureza que funcionavam gratuitamente.

Apesar de tudo isto, a Associação Cultural do Negro não tem mais o seu ethos inicial, tendo de fechar as suas portas.

Devemos salientar, também, o funcionamento das escolas de samba que serviam e servem de veículos de organização cultural do negro, centenas de pequenos clubes, recreativos ou com outras finalidades, espalhados em todo o território nacional, além de terreiros de Candomblé, Xangô, Macumba e Umbanda, que servem também para agrupar o negro brasileiro. Uma verdadeira teia nacional desses grupos mantém o negro unido e cria condições para a preservação da sua memória afro-brasileira.

Por outro lado, a situação do Brasil durante o golpe militar que foi instaurado no país impossibilitou qualquer diálogo democrático entre esses grupos negros e as autoridades autoritárias que semper os viram como desconfiança, acreditando serem pontos de subversão.

Em consequência da saída dos militares do poder, fundam-se organizações mais estruturadas, que retomam a tradição de uma posição de luta étnica e cultural. Essas organizações articulam-se e promovem uma série de atividades culturais, sociais e recreativas, tomando, de vez em quando, posições abertas contra o preconceito racial. A unificação dessas organizações deu-se, finalmente, a partir do dia 18 de junho de 1978, quando da realização de um ato público de protesto nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. Os fatos que determinaram a sua convocação foram a morte do trabalhador negro Róbson Silveira da Luz, no mês de maio, devido a torturas em uma delegacia de Guaianases, na capital de São Paulo; a expulsão, no mês de maio, de quatro atletas juvenis negros do Clube de Regatas Tietê; e, finalmente, o assassinato por um policial, no bairro paulistano da Lapa, de Nilto Lourenço, operário negro.

Durante esse ato foi criado o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, depois abreviado para Movimento Negro Unificado.

A partir daí várias outras organizações de militantes surgiram no Brasil inteiro e atualmente reivindicam o fim do racismo e da exploração econômica, social e cultural do negro. Mas esta é uma história que ainda está sendo vivida, para depois ser contada.

1

ORICO, Osvaldo. O Tigre da Abolição. São Paulo, Nacional, 1931, p. 190.

2

Idem, ibidem, p. 191.