O negro e sua participação política

O negro não apenas povoou e criou a riqueza nacional, assim como transmitiu a sua cultura, mas, também, participou da sua vida política. Em quase todos os movimentos sócio-políticos que se desenrolaram no Brasil durante a sua trajetória social e histórica, houve a participação, a contribuição do negro escravo ou livre. Sem nos referirmos aos quilombos, que também consideramos movimentos políticos independentes, dos próprios escravos, em todas ou quase todas as lutas que se travaram ou foram projetadas eles estiveram presentes, quer na Colônia, quer no Império, até chegarmos aos dias atuais.

Nas lutas pela expulsão dos holandeses, nas lutas pela Independência e a sua consolidação, na Revolução Farroupilha, nos movimentos radicais da plebe rebelde, como a Cabanagem, no Pará, no Movimento Cabano, em Alagoas, ele esteve presente. Também na Inconfidência Mineira, na Inconfidência Baiana, para lembrarmos mais alguns, a sua presença é incontestável como elemento majoritário ou como participante menor. Após o fim da escravidão e do Império, o negro se incorporará aos movimentos da plebe, como em Canudos, na comunidade do beato Lourenço, e, mais destacadamente, na revolta de João Cândido.

Desde as primeiras lutas sociais no Brasil que o negro, ao delas participar, conseguiu ampliá-las e transformá-las em lutas sócio-raciais. Isto é: colocou um componente novo, abriu o leque de participaçnao e reinvidicações, porque uniu essas lutas de explorados às reivindicações da etnia negra, que além de explorada era discriminada racialmente.

As invasões holandesas e o negro

Durante as invasões e o domínio holandês, os escravos e negros em geral tiveram ativa participação nas lutas restauradoras. O seu comportamento não foi uniforme. Aqueles que assumiram uma posição radical negaram-se a participar dessas lutas. Fugiram para as matas, aproveitando as contradições reinantes, e organizaram quilombos, dos quais os mais importantes se confederaram e criaram a República de Palmares. Mas outra parcela de negros, escravos ou livres, aderiu ao movimento contra a permanência dos holandeses no Brasil. Nesse nível de consciência, o maior líder foi, incontestavelmente, Henrique Dias. Ele liderou negros de diversas origens, muitos deles pertencentes aos latifundiários escravistas, os quais se opunham, por interesses econômicos, ao domínio batavo na colônia portuguesa.

JUá na primeira invasão holandesa, ocorrida em Salvador, em 1964, os negros se comportaram bravamente diante do invasor. No início, os holandeses que ocuparam a cidade também organizaram militarmente os negros que decidiram ficar a seu lado. Segundo depoimento de Johann Gregor Aldengurgk, foram

alguns destinados a trabalhar, e outros, armados de arcos, flechas, velhas espadas espanholas, rodelas, piques e sabres de abordagem, se organizaram numa companhia de negros, para capitão do qual foi escolhido um deles próprios, chamado Francisco. 1

A essa tática dos holandeses, recrutando negros evadidos, revidaram os portugueses com a máxima crueldade. estes organizaram, por seu turno, os escravos de Salvador que não fugiram, para desempenharem funções militares na cidade sitiada. Nessa primeira invasão holandesa de Salvador (1624/1625), o negro participou das escaramuças quer de um lado, quer do outro, mas não teve o projeto de emancipação próprio.

Na segunda invasão realizada no Recide, os negros também atuaram, dessa vez mais prolongada e dinamicamente. Henrique Dias, conforme já dissemos, colocou-se ao lado dos latifundiários de Pernambuco e do governo colonial português. Foi um guerreiro eficiente. Lutou nas batalhas das Tabocas, feriu-se várias vezes e conquistou títulos honoríficos do rei de Portugal. Por outro lado, Calabar deu inúmeras vitórias aos holandeses, também demonstrou um alto espírito militar e grande capacidade de comando, tendo, em determinada fase da luta, feito virar êxitos militares em favor dos batavos.

No entanto, Henrique Dias, após a expulsão dos holandeses, queixar-se-ia ao rei pela forma desrespeitosa e humilhante como ele e seus homens estavam sendo tratados pelas autoridades locais. Calabar, ao ser capturado pelos portugueses e brasileiros, é julgado e condenado à morte, não tendo os batavos feito nenhum esforço para livrá-lo do garote vil.

Somente negros de Palmares, que escolheram a via independente de luta, conseguiram auto-afirmar-se até 1695.

Durante a ocupação holandesa, conforme vimos, os negros se portaram de três formas:

a) fugiram para as matas e organizaram quilombos, sendo o mais famoso aquele que mais durou a República de Palmares;

b) participaram como soldados e guerrilheiros ao lado das tropas luso-brasileiras;

c) lutaram ao lado dos holandeses.

A esses três tipos de comportamento devemos acrescentar o bandoleirismo quilombola, exemplificado nos bosch-negroes (como os holandeses chamavam os negros), que atacavam as estradas, fazendas e engenhos indistintamente, fugindo para as matas após cada surtida.

Sempre querendo a mudança social

Nas lutas que se seguiram à ocupação holandesa ele estará presente, de forma violenta ou pacífica, pouco ou muito significativa, mas sempre atuante.

No movimento de Felipe dos Santos, ocorrido em Vila Rica (Minas Gerais), no ano de 1720, temos notícias da participação de portugueses com os seus engros. No dia 28 de junho de 1720, sete mascarados, juntamente com muitos pretos armados, desceram do morro onde se encontravam, invadindo e depredando casas. Em seguida intimaram o governador a não abrir mais novas casas de fundição, símbolo do terrorismo do fisco naquela época.

Também da Inconfidência Mineira, embora não se possa chamar esse movimento de abolicionista, os escravos negros participaram. João Álvares Maciel, filho de um capitão-mor de Vila Rica, ao depor nos autos de devassa, confessa que "sendo o número de homens pretos e escravatura do país muito superior aos homens brancos, toda e qualquer revoluçnao que aqueles presentirem nestes seria motivo para que eles mesmos se rebelassem". O receio do filho do capitão-mor tinha as suas razões. Os escravos mineiros àquela altura haviam fundado diversos quilombos em quase toda a área da capitania. Tanto isto é verdade que o receio do filho do capitão-mor era endossado por Alvarenga Peixoto, que nnao desejava radicalizar a Inconfidência ao nível da participação do escravo como agente político dinâmico nos seus quadros.

Por outro lado, o sargento Luís Vaz de Toledo propunha que os escravos participassem ativamente da luta junto com os inconfidentes, pois, para ele, "um negro com uma carta de alforria à testa se deixava morrer". Essa participação foi parcial e pouco significativa, pelo fato de que em Sabará, segundo depoimento de Brito Malheiro, "se puseram uns pasquins que diziam que tudo o que fosse homem do Reino havia de morrer e que só ficaria algum velho clérigo e que isto foi posto em nome dos quilombolas". Isto bem demonstra como os quilombolas estavam atentos aos fatos políticos que se desenrolavam na cidade.

Na linha de frente

Se na Inconfidência Mineira não podemos ver a ação prática dos negros (mesmo porque foi um movimento sem prática política), na Inconfidência Baiana (Revolta dos Alfaiates), de 1798, essa participação é bem mais visível e direta. isto porque a Inconfidência Baiana tinha objetivos muito mais radicais, e a proposta de libertação dos escravos estava no primeiro plano das suas cogitações. Os seus dirigentes eram, na sua maioria, negros forros, negros escravos, pardos escravos, pardos forros, artesãos, alfaiates, enfim componentes dos estratos mais oprimidos e/ou discriminados na sociedade colonial da Bahia da época.

Um dos seus líderes, Manual Faustino dos Santos, ao ser perguntado sobre quais seriam os objetivos do levante, não teve dúvidas em afirmar que era para

reduzir o continente do Brasil a um governo de igualdade, entrando nele brancos, pardos e pretos sem distinção de cores, somente de capacidade de governar, saqueando os cofres públicos e reduzindo todos a um só para dele se pagar as tropas e assistir as necessidades do Estado.

A mesma coisa diziam os papéis que foram afixados nas paredes da cidade. Em um desses manuscritos, apreendidos pelas autoridades e que consta nos Autos da Devassa, lê-se:

Ó vós povos [ilegível] sereis livre para gozares dos bens e efeitos da liberdade; ó vós povos que viveis flagelados com o pleno poder do inimigo coroado, esse mesmo rei que vós criastes; esse mesmo rei tirado é quem se firma no trono para vos vexar, para vos roubar e para vos maltratar.

E mais:

Homens, o tempo é chegado para a vossa ressurreição, sim, para ressucitáreis [sic] do abismo da escravidão, para levantareis [sic] a Sagrada bandeira da Liberdade.

A conspiração, no entanto, não conseguia progredir, avançar e ligar-se mais amplamente às camadas mais exploradas, discriminadas ou perseguidas. A partir daí os intelectuais que também conspiravam logo arrefecem o ânimo e dela se retiram. Com isto, a direção do movimento ficou praticamente nas mãos de negros e escravos. Luís Gonzaga das Virgens, o autor dos manifestos colados em lugares públicos, é procurado pela polícia e preso finalmente em 24 de agosto. Os inconfidentes tomam medidas de emergência e procuram resgatá-lo, mas não consegue o seu intento. A Inconfidência Baiaba entra em declínio.

Os seus líderes contavam com a participação dos escravos da periferia de Salvador, além dos batalhões de pardos e pretos, para o êxito do movimento. O conteúdo francamente abolicionista do seu programa atraía particularmente os escravos, famílias de ex-escravos e os explorados e discriminados de um modo geral. Isto irá se refletir no conteúdo dos documentos de um modo geral.

A grande participaçnao dos chamados pardos e escravos negros, depois indiciados, refleto o seu conteúdo popular e antiescravista. Prova disso é a própria lista dos implicados e registrados no Autos da Devassa, da qual destacamos os seguintes: João de Deus Nascimento era pardo; Manuel Faustino dos Santos, pardo livre; Inácio da Silva Pimentel, pardo livre; Luís Gama da França Pires, pardo escravo; José, escravo; Cosme Damião, pardo escravo; Felipe e Luís, escravos; José do Sacramento, pardo alfaiate; José Félix, pardo escravo; Joaquim Machado Pessanha, pardo livre; Luís Leal, pardo escravo; Inácio Pires, Manuel José e João Pires, pardos escravos; José de Freitas Sacoto, pardo livre; José Roberto de Santana, pardo livre; Vicente, escravo; Fortunato da Veiga Sampaio, pardo forro; Domingos Pedro Ribeiro, pardo; o preto Gege Vicente, escravo; Gonçalves Gonçalo de Oliveira, pardo forro; José Francisco de Paulo, pardo livre; Félix Martins dos Santos, pardo; além de brancos e pessoas de outros estratos sociais detidos como sujeitos.

Recolhidos à prisão, ali permaneceram até serem julgados. Em novembro de 1799 terminava o julgamento com as seguintes sentenças: Luís Gonzaga das Virgens foi condenado a morrer na forca e ter os pés e mãos decepados e expostos em praça pública; João de Deus Nascimento, Lucas Dantas, Manuel Faustino dos Santos Lira também foram sentenciados à forca e esquartejamento, devendo ficar os seus corpos expostos em lugares públicos.

Igual sentença foi proferida contra Romão Pinheiro, com a agravante de serem os seus parentes considerados infames. Posteriormente a sua pena seria atenuada para degredo. O escravo Cosme Damião foi banido para a África, e o pardo escravo Luís da França Pires, que conseguira fugir, foi condenado à morte, dando a Justiça o direito de matá-lo a qualquer pessoa que o encontrasse.

Depois do julgamento, moroso e discriminatório, foram os quatro executados na praça da Piedade. Lucas Dantas e Manuel Faustino não aceitaram a extrema-unção que um padre franciscano lhes oferecera.

Foram executados, depois de ter o cortejo saído do Aljube, onde eles se encontravam, para a praça da Piedade, onde foram imolados.

Somente quatro brancos, todos intelectuais, foram presos como implicados no movimento. Eram eles Cipriano Barata, Moniz Barreto (autor do hino da Inconfidência), Aguilar Pantoja e Oliveira Borges. Todos negaram o seu envolvimento nos acontecimentos e apresentaram testemunhas que os inocentaram. Seus advogados, todos de nomeada, conseguiram facilmente que fossem absolvidos.

Essa utopia libertária de negros escrevos e livres, artesãos e pessoas socialmente discriminadas foi o movimento programaticamente mais radical de quantos foram projetados até a Independência.

O negro como massa de manobra

Se na Inconfidência Baiana os negros estavam no centro do processo de ação política e os intelectuais brancos fogem à medida que ela se radicaliza, em outros movimentos de mudança social o negro estará presente como força auxiliar, muitas vezes usado como massa de manobra das camadas sociais privilegiadas.

No particular, Joaquim Nabuco escreve que

Depois veio o período da agitação pela Independência. Nessa formação geral dos espíritos os escravos enxergavam uma perspectiva mais favorável de liberdade. Todos eles desejavam instintivamente a Independência. A sua própria cor os fazia aderir, com todas as forças, ao Brasil como Pátria [...] Daí a conspiração perpétua pela formação de uma pátria que fosse também sua. Esse elemento poderoso de desagregação foi o fator anônimo da Independência. As relações entre os cativos, os libertos e os homens de cor, entre estes e os representantes conhecidos do movimento, foi a cadeia de esperanças e simpatias pela qual o pensamento político dos últimos infiltrou-se até as camadas sociais constituídas pelos primeiros. 2

Essa conspiração perpétua de que nos fala Nabuco com propriedade, o desejo de formação de uma pátria liberta do escravisto, prosseguirá da parte dos negros em todos os momentos. Esse desejo manifestar-se-á em todas as ocasiões em que a sua participação foi solicitada.

Acontece, porém, que as classes senhoriais racistas sempre viram essa participação como um perigo social, procurando, por isto, colocar os negros (escravos ou livres) como simples massa de manobra a fim de satisfazerem os seus objetivos estratégicos.

Esse desejo de construir uma pátria, assinalado por Nabuco, levou o negro a participar das lutas pela Independência. Isto poderá ser visto durante a revolução de 1817, no Recife, e o comportamento posterior da estrutura de poder político que se formou após a sua efêrmera vitória. Depois de terem usado os escravos como combatentes, ao tomarem o poder, os insurgentes vitoriosos, diante do murmúrio dos latifundiários escravistas de que seria decretada a abolição do trabalho escravo, apressam-se em lançar uma proclamação capitulacionista, na qual afirmam:

Patriotas pernambucanos! A suspeita tem-se insinuado nos proprietários rurais: eles crêem que a benéfica tendência da presente liberal revolução tem por fim a emancipação indistinta dos homens de cor escravos. O governo lhes perdoa uma suspeita que o honra. Nutrido em sentimentos generosos não podem acreditar que os homens, por mais ou menos tostados, degenerassem do original tipo de igualdade; mas está igualmente convencido de que a base de toda sociedade regular é a inviolabilidade de qualquer espécie de propriedade. Impelido destas duas forças opostas, deseja uma emancipação que não permita mais lavrar entre eles o cancro da escravidão; mas deseja-a lenta, regular, legal. O governo não engana ninguém; o coração se lhe sangra ao ver longínqua uma época tão interessante, mas não a quer prepóstera. Patriotas: vossas propriedades ainda as mais opugnantes ao ideal de justiça serão sagradas: o Governo porá meios de diminuir o mal, não o fará cessar pela força.

O liberalismo escravista, que marcou como ideologia quase todos os movimentos de mudança social quer no Brasil-Colônia, quer no Império, declarava-se defensor da escravidão, apesar das restrições de ordem filosófica que fazia contra o conteúdo moral da sua existência. Ao defender o direito de propriedade de um ser humano sobre outro, automaticamente excluía a classe escrava do direito à cidadania. Aliás, esta será uma constante do liberalismo escravista: aproveitar-se da disposição dinâmica dos escravos no sentido de mudar o sistema de produção vigente e, posteriormente, descartá-los da composição da nova estrutura de poder, conservando a instituição escravista.

Essa tática da classe senhorial de usar o negro como massa de manobra vem desde as lutas contra os holandeses e continuará posteriormente. Nas lutas pela consolidação da independência o mesmo quadro se repetirá. Parte da escravaria irá lutar, ou sob as ordens dos seus senhores ou por vontade própria ao lado das fileiras independentistas. Mas, a Independência também não o libertou.

Conquista-se a Independência, conserva-se a escravidão

Conforme vimos, logo depois do grito de D. Pedro I articularam-se os mecanismos políticos que irão organizar o novo tipo de Estado. Enquanto isto se verificava, havia necessidade de se organizarem núcleos patrióticos para consolidá-la militarmente. E o negro foi mais uma vez mobilizado. Os escravos, no entanto, não aceitaram passivamente a situação de simples objetos mandados pelos seus senhores, e muitos fugiram para as matas, engrossando o contigente da quilombagem que já existia.

Resumindo, podemos dizer que o elemento negro (escravo ou livre) teve quatro formas fundamentais de comportamento: 1) aproveitou-se da confusão e fugiu para as matas debandando dos seus senhores, ou juntando-se a algum quilombo existente; 2) aderiu ao movimento da Independência para com isto tentar conseguir a sua alforria, como fora prometida; 3) lutou por simples obediência aos seus senhores; e 4) participou ao lado dos portugueses.

Quanto à primeira forma de comportamento, as autoridades não tiveram dúvidas de reprimi-la com violência. A defesa da propriedade escrava, da mesma forma como nos movimentos anteriores, apresentava-se como medida prioritária. O Governo Provisório que se instalara na província procurou acautelar-se contra os prejuízos que essas fugas continuadas representavam aos senhores e contra o perigo que significavam à ordem social, baixando as seguintes normas para serem obedecidas sem reservas:

  1. Que toda e qualquer pessoa que tiver em seu poder algum escravo que por legítimo título lhe não pertença, o entregue ao seu verdadeiro senhor; e, ignorando quem ele seja, vá logo recolher à cadeia mais vizinha, entregando-o ao Juiz respectivo; isto no prazo de quinze dias depois da publicação deste, abaixo das penas estabelecidas contra os receptores dos escravos alheios.

  2. Que todos os Juízes e Capitães-Mores façam a mais exata indagação para descobrirem tais escravos e fazê-los prender. Recolhidos que sejam à cadeia, darão conta pela Secretaria deste Governo, remetendo uma lista circunstanciada, na qual se declarem os nomes, nação e sinais dos sobreditos escravos e a quem pertencem, sendo que eles o contassem; outrossim declarem os vencimentos que tiverem os Capitães-do-Mato ou quem os for prender, os quais se deverão regular pela distância em que forem presos com relação à morada dos referidos Capitães-do-Mato, na conformidade do seu regimento; e o dia em que forem recolhidos à cadeia a fim de saber-se o quanto tem despendido o carcereiro em comedorias, o que tudo se faz público pela folha que chege à notícia dos seus donos.

  3. Que todos os proprietários de Engenhos e Fazendas indaguem se nas suas terras se acolhem alguns destes escravos e os farão prender e remeter à cadeia vizinha; e não os podendo prender, por se recolherem às matas, dêem logo parte aos Capitães-Mores e Juízes, declarando o lugar onde lhes constem que existem. 3

Atravéis de medidas como estas a classe senhorial resguardava-se das possíveis atitudes de rebeldia dos escravos, mesmo usando-os como massa de manobra militar contra as tropas portuguesas. O próprio general Labatut usou dessa tática, fuzilando escravos que ficaram ao lado dos colonizadores lusos e criando um batalhão de negros para combater ao lado de suas tropas.

Toda essa participação do negro nos movimentos sociais e políticos resultou, sempre, em uma experiência frustrada.

Uma república de homens livres no Brasil escravista

Uma exceção, no entanto, deve ser feita: a sua participação na República de Piratini. Em pleno regime escravista, durante o Segundo Império, os escravos viveram em liberdade durante os anos de 1835 a 1845, num momento em que, no resto do Brasil, eles lutavam de armas nas mnaos dos diversos movimentos da quilombagem que marcaram aquele período.

Referimo-nos à sua perticipação na Revolução Farroupilha e na proclamação da República de Piratini que ocupou o espaço geográfico dos atuais Estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. A participaçnao dos escravos nessa república separatista proclamada por Bento Gonçalves tinha, ao contrário da sua participaçnao em outros movimentos, a sua razão de ser.

Sendo o Movimento Farroupilha deflagrado por estanceiros ou grupos e camadas a eles ligados social ou economicamente e não sendo substantivo o trabalho escravo nesse tipo de atividade, os seus promotores não encontraram dificuldades em alforriar os seus escravos, que passaram a ser homens livres, tendo a sua maioria se engajado nas tropas dos farrapos, para combater pelos ideais republicanos. Escravo que chegasse ao território farroupilha era considerado homem livre.

As três províncias insurgentes não receberam um contingente demográfico africano considerável em relação a outras, como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco, Maranhã e Bahia, embora o seu coeficiente tenha sido bem maior do que se supõe. O tipo de economia pastoril e extrativa prescindia do escravo ou o usava em quantidade bem inferior à dos engenhos de açúcar do Nordeste ou na mineração. Por outro lado, os trabalhos agrícolas, especialmente da erva-mate, também não eram de natureza a exigir uma concentração de braços escravos como a que a economia dos engenhos ou a da mineração impunham. Além disso, devemos salientar que, nas regiões fronteiriças, havia sempre o perigo de o escravo fugir para ourtos países. Daí não terem as camadas dirigentes da República interesse em manter a escravidão. O Rio Grande do Sul tinha, na época, 100000 negros na sua população de 360000 habitantes.

O escravo negro participou nesse episódio como aliado livre, criando várias zonas de perigo militar para o adversário em todas as áreas de combate. Ele não foi, também, um aliado de última hora. Desde a tomada de Porto Alegre pelos farrapos, quando se inicia a revolta, o escravo negro estará presente, resgatando a sua liberdade com essas lutas. Todos os depoimentos da época afirmam que o negro foi um aliado dos mais importantes da República de Piratini. Dante de Laytano:

No avanço sobre a capital, em 20 de junho e em 30 de junho [de 1835], e no cerco de Pelotas, em 1836, que amrcam os passos iniciais e importantes das guerras de dez anos, os escravos negros tiveram um lugar de primeiro plano.

Os negros, escravos ou libertos, iam, daí por diante, tomar as posições de saliente coragem e entusiasmo de lutar.

Foram eles elementos de colaboração, entraram com os primeiros insurretos, estiveram ao par dos segredos e das senhas revolucionárias e tomaram parte na primeira avalanche que se jogou contra o Império. 4

O major João Manuel de Lima assumiu o comando da 1a. Legião de escravos que entrou na cidade de Pelotas. Os escravos tinham razões de sobra para combater ao lado dos farrapos. O sentido antiescravista dos seus líderes justificava plenamente esse engajamento. Bento Gonçalves e Domingos de Almeida, ministros da Justiça e do Interior da jovem e efêmera República respectivamente, ao saberem que as tropas imperiais, ao prenderem negros soldados, assinaram, em 11 de maio de 1839, documento no qual decidiam:

O Presidente da República, para reivindicar direitos inalienáveis da humanidade, não consentindo que o livre rio-grandense de qualquer cor que os acidentes da Natureza os tenham distinguido sofra impune e não-vingado o indigno, bárbaro, aviltante e afrontoso tratamento que lhe prepara o infame Governo Imperial, em represália ao que lhe é provocado, Decreta:

Artigo único: desde o momento em que houver sido açoitado um homem de cor a soldo da República pelas autoridades do Brasil, o General Comandante-Chefe do Exército, ou Comandante das diversas divisões do mesmo, tirará a sorte aos oficiais de qualquer grau que sejam tropas Imperiais nossos prisioneiros, e fará passar pelas armas aquele que a mesma sorte designar.

Essa medida extrema de Bento Gonçalves bem demonstra o nível de valorização dos negros combatentes por parte dos farroupilhas. Isto porque, como é evidente, o negro demonstrava um ótimo desempenho como solvado. Porém, não foi apenas como lanceiro, soldado de infantaria ou nas cargas de cavalaria que ele se destacou pela importância do seu papel, mas na Marinha também. Lanchões armados, tripulados por ex-escravos, faziam parte da pequena frota farroupilha. Em várias oportunidades tiveram de provar a sua bravura, conforme o testemunho de outros participantes dessas refregas. Rafael e Procópio, negros, participaram juntamente com Garibaldi, que aderiu aos farroupilhas, dos combates que suas tropas travaram em Camaquã contra Frederico Moringue, das tropas imperiais. Muita da resistência que foi oferecida àquele chefe legalista deve-se à disposição dos negros que estavam ao seu lado.

O próprio Garibaldi, que tão ativamente participou ao lado das tropas de Bento Gonçalves criando, mesmo, a auréola de Herói de Dois Mundos, nas suas memórias refere-se elogiosamente a esses combatentes.

Esse intermezzo de liberdade durou pouco, porém. A República de Piratini foi derrotada pelo Duque de Caxias, que comandava as tropas do império escravista. Mesmo assim, os farroupilhas, no seu tratato de rendição, estabeleceram uma cláusula na qual se estipulava que deveiam "ser livres, e como tais reconhecidos, os cativos que serviram na revolução".

Logo depois, porém, o escravismo voltou a se instalar em toda a sua plenitude no território, que foi, durante dez anos, uma república sem escravos.

1

ALDENGURGK, Johann Gregor. Relação da conquista e perda da cidade de Salvador pelos holandeses em 1624-1625. São Paulo, Brasiliensia Documenta, 1961, p. 177.

2

NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. São Paulo e Rio de Janeiro, nacional e Civilização Brasileira, 1938, p. 122.

3

Apud AMARAL, Brás do. História da Independência na Bahia. salvador, Progresso, 1957, p. 293.

4

LAYTANO, Dante de. História da república rio-grandense. Porto Alegre, Globo, 1936, p. 149.